|
Segunda-feira, 18/4/2011 Maupassant e Flaubert Claudia Lage Guy de Maupassant, o célebre contista, que viveu todas as angústias e prazeres do século XIX, costumava dizer ao amigo e mestre, também escritor e não menos célebre, Gustave Flaubert: "a literatura não vale uma vida, mas uma vida vale à literatura". Flaubert, que dedicou obsessivamente a maior parte dos seus dias à escrita, exigia de seu discípulo entrega completa, disciplina e exatidão. Qualidades que Maupassant perseguia ao mesmo tempo em que também se deixava abstrair nos salões e nas aventuras amorosas. A exigência de Flaubert era tanta que o proibia de publicar qualquer texto que não estivesse perto da perfeição. Ou da exatidão, o jovem escritor assim compreendia. Na arte não se busca aquilo que é perfeito, já havia entendido, mas aquilo que é exato. Aquilo que só daquele modo se pode expressar. "Só existe um modo de exprimir uma coisa, uma só palavra para dizê-la, um só adjetivo para qualificá-la e um só verbo para animá-la", o mestre Flaubert ensinara. Com a lição aprendida, Maupassant buscou até o fim a simplicidade objetiva em seus contos. A palavra exata, o essencial em cada ação, o principal de cada fato. Não era, entretanto, um escritor de superficialidades, restringindo-se apenas à descrição de acontecimentos, como a má vontade e a obtusidade de alguns críticos gostavam de afirmar. "A meta do escritor não é contar uma história", Maupassant disse uma vez, "nem comover ou divertir, mas nos levar a entender o sentido oculto e profundo dos fatos". Para ele, o escritor enxerga o universo, os objetos, os fatos e os seres humanos de uma maneira pessoal que é o resultado de suas observações e reflexões. E comunica essa visão pessoal do mundo reproduzida em ficção. "Cada conto é uma criação específica, jamais genérica. É como se cada palavra do conto que escrevemos nunca tivesse sido usada antes. Faz parte de sua ilusão e de sua beleza." Com sua prosa rápida e afiada, Maupassant criou memoráveis descrições da aristocracia, da burguesia e do proletariado parisiense, assim como dos camponeses da Normandia, a sua terra natal, e da experiência de soldados nas frentes de batalha, procurando sempre seguir à risca um dos principais conselhos do mestre Flaubert, em relação à visão pessoal do escritor. "Devemos examinar com a demora suficiente e bastante atenção o que quisermos descrever, a fim de descobrir algum aspecto que ninguém tenha ainda visto ou de que ninguém tenha ainda falado." Esse aspecto, para Flaubert, era a alma da história, o que diferencia e alimenta a personalidade do escritor. "Em todas as coisas existe algo de inexplorado. Estamos habituados a utilizar-nos de nossos olhos apenas com a recordação daquilo que já foi antes pensado a respeito do objeto de nossas contemplações. Todas as coisas, por insignificantes que sejam, contêm um pouco de desconhecido. É isto o que devemos procurar. Para descobrir um fogo em chamas e uma árvore em uma planície, permaneçamos ante este fogo e esta árvore até que já não se pareçam, para nós, com nenhuma outra árvore e com nenhum outro fogo." Flaubert utilizava esse ensinamento como um método, procurando sempre descrever de forma concisa os personagens, os objetos e as situações de um modo que os singularizava por completo, diferenciando-os de todos os outros personagens, objetos e situações. "Quando você passar junto de um merceeiro sentado à frente de seu armazém, ou de algum porteiro fumando seu cachimbo, ou de um cavalo de cabriolé num ponto de estacionamento, mostre-me aquele merceeiro e aquele porteiro na posição em que estavam, com seu aspecto físico, salientando também, por meio da fidelidade de seu retrato, toda a natureza moral dos mesmos, de modo que eu nunca os possa confundir com outros merceeiros ou porteiros. E faça-me ver com uma simples palavra, com uma frase, que o cavalo do cabriolé não se parece com os outros cinqüenta que se seguiam e que o antecediam." A singularidade expressa por meio da concisão e da simplicidade se tornou a busca literária de Maupassant. Em mais de 300 contos, exercitou o manejo das palavras sob o olhar e os conselhos do mestre Flaubert, a quem admirava profundamente, pela profunda dedicação à literatura. "Flaubert me ensinou, através de seus conselhos e também de seus livros, que mais vale ao autor a singularidade do que o estilo." A explicação é, ainda hoje, inquietante, já que a maioria dos escritores transpira e aspira toda a vida para encontrar o seu estilo. "Flaubert não tem um estilo definido, mas vários, que seguem o fluxo das palavras e das frases moldadas pelos seus personagens." Maupassant compreendeu: o escritor não deve se impor ao texto, como se fosse um patrão a ordenar seus empregados. A linguagem deveria então surgir do universo descrito, de sua respiração, suas nuances e experiências, e não do autor e de suas ambições literárias e pessoais. "É um trabalho de abnegação", disse Maupassant, "de sensibilidade, e, principalmente, de escuta". Maupassant considerava a relação de Flaubert com a escrita a lição mais importante de todas para um escritor. Antes de tomar decisões sobre isso e aquilo em seu livro, colocar-se numa posição receptiva. E escutar o tema, os personagens ― seus pensamentos e desejos, e todo o universo a ser criado, como se fosse música. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no jornal literário Rascunho. Claudia Lage |
|
|