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Segunda-feira, 9/5/2011 A Empulhação Esportiva André Forastieri A Copa e as Olimpíadas vêm aí e é hora de confessar aos caros amigos: não tenho espírito esportivo. Não torço para nenhum time, não vejo na TV. Não consigo entender como alguém pode se importar com competições esportivas de qualquer natureza. O mundo dos esportes para mim é um vergonhoso desperdício de energia, uma engambelação, marketing descarado e reacionário. Olha que passei a infância jogando bola. Meu pai nunca se interessou por esportes, mas lembro que, bem pequeno, eu simpatizava com o Palmeiras ― pensando bem agora, por causa de um tio muito querido que é palmeirense. Em 1977, o Corinthians me seduziu ― toda aquela coisa do time nunca ter sido campeão, ser um time do povão. Até entendo que adultos possam se interessar por praticar algum esporte ― os homens precisam se agarrar à infância de alguma maneira. O que não entra na minha cabeça é essa coisa de torcer para um time, ou um atleta, e ficar assistindo à coisa toda pela TV, lendo cadernos de esporte, discutir a respeito e não perder um Cartão Verde. É absurdamente chato, estúpido, perda de tempo. E mesmo assim, em qualquer escritório do mundo, as segundas-feiras são dedicadas à rodada da semana. Nos clubes do planeta, os negócios se fazem e os círculos sociais se fortalecem no bar e na sauna, após o tênis ou o golfe. Nos bairros pobres, os Ronaldinhos, Michael Jordans e Mike Tysons perpetuam a mística da ascensão social pela superioridade física. Não fazer parte desse mundo me torna um alien instantâneo em qualquer grupo. Como se sabe, esse negócio de não gostar de futebol é coisa de viado. Pra completar, não gosto muito de jogos em geral. Até acho divertido jogar baralho, Quake ou xadrez, mas simplesmente não tenho impulso de ganhar. Não me importo o suficiente. Os amigos velhos descontam como excentricidade. Com estranhos não toco no assunto, a não ser bêbado ― já me diverti bastante em mesa de bar malhando Ayrton Senna. Para quem está de fora, essa coisa toda de esportes é de um primitivismo surreal. Inspirado por Tropas Estelares, peguei em vídeo O Triunfo da Vontade, documentário-propaganda nazista de Leni Riefenstahl. Paul Verhoeven cinicamente chupou planos inteiros do filme para sacanear o imperialismo integrado do american way of life. Fez uma farsa alucinada que troca de registros o tempo todo. Confundiu, irritou e engambelou burros e inteligentes. A reação foi interessante, porque qualquer olimpíada televisiva é muito mais nazi que Tropas Estelares, visualmente e conceitualmente. O esporte mediatizado coloca o culto ao corpo e a vitória a qualquer preço a serviço das megamarcas, que alimentam a palhaçada para vender tênis e Gatorade. Mantém vivos e fortes valores podres como patriotismo, tribalismo e sobrevivência dos mais fortes (e não dos mais aptos), sob o manto do "espírito esportivo". Curiosamente, com suporte total e interesseiro dos brasileiros bem-pensantes, os mesmos que nos anos 70 garantiam que futebol é "o ópio do povo" e falso equalizador de classes e interesses. Parece que sempre foi assim. Nossa cultura trata os esportes como se eles fossem uma tradição milenar da humanidade. Mas são uma invenção moderna. Em A Era dos Impérios, Eric J. Hobsbawn dá umas dicas sobre o nascimento da empulhação esportiva. Foi no centro econômico do final do século 19, a Inglaterra. A industrizalização e urbanização levaram ao aparecimento de uma nova classe média alta e ao crescimento da classe média baixa. Nesta nova sociedade de massas, em que é difícil se destacar individualmente, restou se diferenciar como grupo. O principal objetivo da nova classe média passou a ser se destacar do povão. Através da educação, do "estilo de vida" (em seu conceito original), da segregação residencial ― e do esporte, onde tudo isso se uniu ― confiram a explicação no livro, que é do cacete. Inicialmente vendida como entretenimento saudável para as massas (melhor que encher a cara de gim), a novidade foi estimulada pelas elites por seu aspecto patriótico e militarista. Os clubes profissionais de futebol começaram como times de firmas inglesas, tanto na Inglaterra como fora. O ideal do esporte amador, não remunerado (exigindo um tempo de que nenhum trabalhador dispõe), disponibilizou para a classe média alta elementos da nobreza através do mérito. Logo ganhou sua vitrine-símbolo: os Jogos Olímpicos. A novidade se espalhou organizadamente, do Império para o planeta que comandava. Hobsbawn resume: "Um proletariado industrial e uma nova burguesia, ou classe média, emergiram ao mesmo tempo como grupos autoconscientes, que se definiam um contra o outro por meio de maneiras e estilos de vida e ação coletiva". Mudou muito? Aqui do lado de fora, vejo só duas possíveis qualidades redentoras nos esportes. Um, o estabelecimento de ícones mundiais ― e a esta altura qualquer coisa que ajude na unificação do planeta é positiva, mesmo quando for babaca ou repugnante. Dois, sua versatilidade como passaporte. Percebi isso na África do Sul. Ser brasileiro é ser amado em quase qualquer canto do planeta ― tudo por causa do futebol. Cada sul-africano que sabia que éramos brasileiros abria um sorriso e puxava papo. Devemos isso à Seleção Brasileira e ao futebol. E a Copa e a Olimpíada que se aproximam? Pessoalmente, quando chegar a hora vou estar na casa de alguém tomando cerveja, comendo batatinha e torcendo pelo Brasil. Passa mais rápido. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Caros Amigos, em abril de 1998. André Forastieri |
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