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Segunda-feira, 11/7/2011 Aquarela de um Brasil sem cor Túlio Henrique Pereira Em estadia em Paris, reverberando um cotidiano regional, eis que ao pegar o metrô e fazer o mesmo trajeto por duas semanas seguidas (Cité Universitaire, Porte d'Orléans, Gare de l'Est, Riquet) tive o vislumbre de imagens e palavras que remeteram as minhas velhas inquietaçoes sobre o Brasil. As palavras são do título de um best-seller muito bem sucedido nos Estados Unidos, escrito pela norte-americana Kathryn Stockett, cujo título original The Help recebeu tradução para o francês de La couleur des sentiments e em português de A Resposta. Antes da leitura do título de La couleur des sentiments, confesso que desconhecia sua autora e toda a fama em torno de sua obra. Relato que o vislumbre se deu pela promoção em outdoor, ampla e muito didática, da capa do livro, que mostra duas mulheres negras dispostas nos planos periférico-centrais da imagem, ocupando os lados direito e esquerdo da capa. Ambas vestem uniformes de babá e pajeiam um bebê branco, que está no plano central do cartaz. Vieram-me, imediatamente, os estudos de Frantz Fanon (1925-1961) à memória por considerar aquelas duas negras a exteriorização do discurso desse estudioso em busca da evidência do negro na França e na Argélia das décadas de 1950-1960. Cheguei ao ponto de pensar, equivocadamente, que apenas um negro como ele poderia ser capaz de vincular aquela representação do matiz preto de um negro ou negra a uma propaganda para comercialização de um produto. Ainda que este produto se tratasse de um livro. Mas, em seguida me veio a racionalização do lugar comum e a lógica de que, apesar de negras, aquelas mulheres pertenciam a um espaço particular: eram babás e o bebê, branco, representava outro lugar comum reservado à violência da subserviência determinada pela cor e pela classe, impondo a introjeção a partir das relações conflitivas protagonizadas por muitas mulheres negras que desempenhavam serviços domésticos em residências de famílias legitimamente caucasianas, principalmente, no que se refere a famílias europeias e, muito pouco, estadunidenses ou brasileiras, na época do recorte de 1960, estabelecido pela autora da obra, e até mesmo posterior no que diz respeito ao Brasil. Como negro miscigenado que sou, ocupado pela pesquisa das identidades negras pluralizadas e opacizadas no Brasil, desejei adquirir aquele livro. Depois da aula pesquisei pelo título e descobri que se tratava de uma autora norte-americana branca. O fato mais preocupante foi de que se referia a um best-seller com mais de 100 semanas na lista dos mais vendidos do New York Times. Não que haja algo em desfavor dos autores brancos contando histórias sobre negros, ponto que, para citar o economista e pesquisador George Ermakoff, é recorrente e quase exclusivo desde a Antiguidade Clássica até os tempos modernos no Ocidente. Tampouco diz respeito a um simples olhar de repulsa aos mais vendidos do mundo. Mas, todos sabem que não precisa ser gênio para notar que esses romances populares agradam por sua leveza rasa, linearidade narrativa, limitação histórico-contextual e, muitas das vezes, a calcificação de clichês encharcados de uma visão romântica de seu relator. As temáticas em torno das questões sociais abordadas por esses romances são muitas vezes motes induzidos que elevam o potencial de mercado do produto, considerando suas inúmeras propagandas gratuitas. Não digo que não haja qualidade nesses gêneros, mas que há catarses e investimentos em demasia. Gosto dos best-sellers para ler durante o trajeto de viagens curtas e até longas. Cresci lendo Agatha Christie, Sidney Sheldon e depois de crescido Khaled Housseini. Estes autores e suas obras já me fizeram refletir sobre muitos aspectos da vida, principalmente, porque sabem fazer com que vejamos a objetividade da sistematização humana, ou seja, o cotidiano. No entanto, nós humanos somos complexos e não nos vemos representados no óbvio, ainda que ele se pareça mais óbvio que o habitual. E é neste aporte das obviedades que digo não ter lido, até o presente momento, La couleur des sentiments. Portanto, esta crônica não se trata de uma crítica sobre o livro, mas das impressões imanadas a partir da visualização de sua abordagem iconográfica na versão francesa. Ao continuar a pesquisa pela biografia e a obra da autora, descobri que ela será a estrela da vez na 15ª Bienal do Livro Rio, a se realizar na cidade do Rio de Janeiro do dia 1º ao dia 11 de setembro de 2011. E tive o prazer de comparar a iconografia das capas das versões estadunidense, francesa, brasileira com outras que me foi possível o acesso. Novamente, me vi surpreendido com a ideia da presença e ausência do corpo negro, de modo geral, na mídia brasileira, especialmente. As propagandas em torno da visita de Kathryn Stockett, ao contrário do que se vê em Paris, não evidenciam a capa do romance, a razão principal de sua vinda, mas sim a fotografia da loura senhora Stockett. O mais curioso, portanto, é a concepção da capa da versão brasileira, ao dar destaque a duas mãos entrelaçadas, realçando a integralidade do mito de uma harmonia ou de uma verdade interracial no Brasil. As capas nas versões alemã e espanhola também não tocam na questão étnico-racial de forma direta. Em particular, a versão espanhola traz um prato de cookies sabor baunilha com esparsas gotas de chocolate. O título recebe a tradução de Criadas y Señoras. Na Espanha e, especialmente, na Argentina, a presença da etnia negra dos sujeitos transplantados da África, é um fenômeno mais complexo do que nos casos do Brasil e da França, o que não quer dizer que não houve exploração escrava de negros nesses países, mas conforme suscitou o linguista holandês Teun Van Dijk ― em seu estudo sobre a dominação étnica e o racismo discursivo em Espanha e na América Latina de 2009 ― esses países teriam erradicado seus negros nos períodos de Guerra. Entretanto, tanto a Argentina como a Espanha vivenciam na contemporaneidade sérios problemas sócio-culturais e políticos por ignorarem a presença de uma diversidade étnica em sua formação populacional de reminiscentes ameríndios. O título recebe a tradução de Gute Geister na versão alemã e uma iconografia singela com motivo florido, lembrando um papel de parede de uma residência de luxo. Nessa capa não há associação às questões étnicas. Todavia, uma amnésia do massacre aos judeus e, em menor proporção, aos africanos, cria um imaginário de uma identidade étnica supostamente coesa na Alemanhã atual por parte de leitores desavisados. Dos títulos que citei aqui para o livro da senhora Stockett, o mais evidente e de criteriosa composição poética digna da arte literária, que requer tão simplesmente o estranhamento de quem consome arte, é, sem dúvida, o de versão francesa. Observando o título e o tratamento dado à imagem da versão intitulada La couleur des sentiments, fui capaz de compreender muito mais as sensações do sentir-se negro, do que sentiria no Brasil, com as referências midiáticas antagônicas sobre as relações interraciais. É preciso ir muito além do que se vê no politicamente correto e sentir a dor dos limites que determinam a vida pública e a vida privada no mundo ocidental brasileiro, onde o público é negro e o privado se quer branco. As palavras desse título e suas imagens tratam da recriação da cor, da sensação do sentir pela cor, bem como do ato de se despertar ou se motivar por ela. Talvez seja este o estranhamento a que tanto nos falou o médico e etnógrafo antilhano Frantz Fanon. Ou ainda possa ser esse o estranhamento de quem passeia pelo metrô parisiense e se depare com aquela iconografia que nos chama a atenção para o matiz preto de duas mulheres de etnia negra. De modo geral, em Paris, ao contrário do que não se vê nas grandes metrópoles brasileiras como São Paulo/SP, Salvador/BA e Goiânia/GO ― destaco as capitais que empiricamente conheço ―, o corpo negro está nas lojas de grife vendendo perfumes, comidas e utensílios de uso comum. Este corpo também está em cartazes afixados pelas ruas, anunciando espetáculos, automóveis, eletrônicos, cosméticos e toda grife de cultura e política a que se possa pensar. É evidente que são representações em menor visibilidade do que a que se faz daquele corpo branco, mas faz-se importante frisar que, apesar de poucas, essas representações na Paris do século XXI existem, mesmo face à grande onda de racismo que podemos nela verificar. Falar da representação midiática do matiz preto do corpo negro na mídia brasileira é falar do silêncio do seu povo, cuja educação vem depois do esporte, vem depois da exaltação do mundo do Canaval de malandros e heróis citados pelo antropólogo brasileiro Roberto DaMatta, vem depois da paixão por carros e, depois, até da preocupação com a saúde, alimentação, democracia, política e saberes. É falar de um país que externamente é conhecido por suas mulatas suntuosas, ou como escreveu um dia Ary Barroso (1903-1964), um país de morenas sestrosas de olhares indiscretos, mas que em seus concursos de misses procura eleger somente as louras para vender um branqueamento epidérmico. Falar dessas representações midiáticas no Brasil é falar do país com o maior poder de compra de automóveis do mundo. Senhores e sinhás que aguardam na fila de espera para pagar por seus veículos sem choro nem vela, mas que a cada mês titubeiam por desembolsarem R$100,00 pela manutenção de trabalhadoras domésticas, em sua maioria, negras e mulatas. Negras e mulatas a quem são negadas, desde a Colônia, transporem os limites de sua condição social historicamente intimidativa. As propagandas em torno da esperada visita de Kathryn Stockett, ao contrário do que se vê em Paris, não poderiam evidenciar na sociedade brasileira a capa do romance na síntese do que ele reverbera, pois há nessa sociedade o prevalecimento do silêncio daquilo que não se fala, o tabu da escravidão mesclado ao interdito do que se contempla sobre a diversidade da cor da pele. No Brasil, melhor do que mostrar a imagem ressignificada de duas negras em seus uniformes de serviço em um outdoor para a promoção de venda de um produto cultural simbólico, no caso do livro, é mantê-las em seus lugares comuns. O discurso para se justificar esse silêncio e a opacidade da presença do matiz escuro na mídia brasileira é quase unânime, ecoando em som alto e firme: "o negro não vende". Será? E o que ou quem determina uma segmentação de mercado e faz significar a formação de públicos consumidores? Neste contexto a questão poderia ser reformulada para "interessa que se consolide ou se reconheça um público consumidor formado por negros e suas variações no universo étnico-diversificado no Brasil?" Além disso, e mais doloroso que isso, é pensar que seja necessário que se faça uma abordagem capitalista para que se reivindique uma reinserção social de caráter étnico. Posto isso, cabe o entendimento mimético de que o Brasil dos brasileiros é nada menos que um mulato inzoneiro, cujo corpo é pintado com uma aquarela sem cor. E, geralmente, ninguém consegue vê-lo sorrindo em um outdoor na Avenida Paulista. O Brasil insiste querer ser Colônia de uma Europa que não existe mais. É mambembe e até malemolente como me disse uma francesa negra, que na França existe. O Brasil ainda está inconsciente do seu ato de despertar. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Túlio Henrique Pereira é autor do livro de poemas O Observador do Mundo Finito. (Leia também "Um defeito de cor, um acerto de contas" e "Monteiro Lobato, a eugenia e o preconceito".) Para ir além Túlio Henrique Pereira |
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