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Segunda-feira, 20/1/2003
A ética de Camus contra o terror de Sartre
José Nêumanne

Uma discordância sobre o que deve predominar - a moral ou a ideologia, a ética ou a política - separou dois intelectuais cujo convívio tornou mais charmoso e inteligente o debate filosófico e literário nos cafés da Paris do pós-guerra - Jean-Paul Sartre e Albert Camus. A eclosão dos combates pela independência da Argélia acirrou esse confronto entre dois amigos próximos que se tornaram adversários irreconciliáveis: de um lado, o fundador do existencialismo, que havia abraçado sem restrições a militância marxista (o que significava apoiar a brutalidade totalitária do georgiano Josef Stalin na União Soviética e de Mao Tse-tung na China), condenava com fúria sagrada a adoção da tortura como método adotado pelos oficiais franceses para arrancar confissões dos inimigos rebeldes, mas justificava os atentados terroristas da maioria árabe contra a minoria de argelinos descendentes de europeus como uma forma de defesa. Do lado oposto, o teórico do absurdo e romancista de A peste, ele próprio nascido em Oran, na Argélia, condenava o terrorismo com a mesma virulência com que execrava os métodos bárbaros das tropas de ocupação.

No primeiro momento, em plena farra revolucionária dos anos 60, o autor de A Náusea pareceu imbatível. Com a mulher, Simone de Beauvoir, tornou-se o porta-voz da má consciência colonial européia, aderiu à revolução cultural de madame Mao e condenou ao silêncio os escassos e tênues vagidos dissidentes que chegavam ao Ocidente egressos do Arquipélago Gulag, na União Soviética. A morte precoce (aos 47 anos), em 1960, não pela tuberculose que o acometera desde jovem, mas num desastre de automóvel, livrou Camus da execração universal. Mas, como resultado da falta de razão, a que seria condenado no conflito pelos bem-pensantes das academias do mundo inteiro, restou o desprezo por seus textos de reflexão moral e filosófica. E pelo menos manteve-se inabalável seu prestígio de fino estilista da língua de Voltaire, seja como romancista (O Estrangeiro é um texto seminal da literatura mundial no século 20), seja como dramaturgo (seu Calígula é um clássico ao qual até seus mais empedernidos adversários são obrigados a se render).

Como o tempo seguiu mais implacável do que os contendores e continuou sendo senhor da razão, contudo, a filosofia e a ética de Camus estão sendo exumadas, enquanto a oportunista adesão de Sartre e Beauvoir à barbárie stalin-maoísta tornou-se indefensável. Ou seja, a situação virou pelo avesso. Ou seja, agora o francês (que, como o adversário, foi premiado com o Nobel) é exaltado pela qualidade literária e sua militância política do fim da vida, considerada uma excrescência que em nada dignifica o filósofo das primícias.

Quanto a Albert Camus, resta de sua obra a lição fundamental de que o gênero humano permanece o mesmo em seus fundamentos, ainda que mudem as circunstâncias sociais e históricas. Prova-o a coletânea Reflexões sobre o Terrorismo, que acaba de vir a lume em Paris pela editora de Nicolas Philippe, reunindo artigos para jornais e trechos de romances e peças em que ele abordou o tema, não sob a ótica da planfetagem ideológica, defendida por Sartre e seus epígonos, mas com a profundidade que a perene gravidade do assunto exige. A organizadora Jacqueline Levi-Valensi e os comentaristas Antoine Garapon e Denis Salas chamam a atenção do leitor para a diferença das épocas, aquela em que Camus escreveu os textos - sua militância na resistência à ocupação francesa pelos alemães na Segunda Guerra, a Guerra Fria e a Batalha de Argel - e esta em que os lemos, com os atentados suicidas de palestinos contra israelenses no Oriente Médio e, sobretudo, após a ação executada pelos asseclas de bin Laden nos EUA em 11 de setembro de 2001.

As motivações e circunstâncias são diferentes, mas as reflexões de Camus permanecem frescas, sólidas e prontas para serem usadas. Na série de textos "Cartas a um amigo alemão", ele escreveu: "Nós lutamos por esta nuance que separa o sacrifício da mística, a energia da violência, a força da crueldade e por esta ainda mais frágil nuance que separa o falso do verdadeiro e o homem em que nós temos esperança dos deuses frouxos que vocês veneram". E em editorial para o jornal da resistência Combate registrou: "Diante das perspectivas terríveis que se abrem para a humanidade, percebemos cada vez mais que a paz é o único combate que vale a pena. Essa não é uma oração, mas uma ordem que deve subir dos povos para os governos: a ordem de escolher de vez entre o inferno e a razão".

Da série de artigos "Nem vítimas nem carrascos" é seu célebre aforismo: "O século 17 foi o século das matemáticas; o 18, o das ciências físicas; e o 19, o da biologia. Nosso século 20 é o século do medo". O medo, para ele, é uma técnica: mete medo o homem que não pretende convencer o adversário, mas esmagá-lo, usando a arma letal da ideologia. Escrita em 1946, um ano depois da explosão do cogumelo atômico em Hiroshima e 55 anos antes da derrubada das torres gêmeas do World Trade Center, essa sentença denuncia e deplora uma das pragas de nosso tempo: a substituição da persuasão pelo terror como instrumento político para impor o monopólio ideológico à custa da liberdade.

Atenuam a adesão de Sartre à barbárie ideológica a excepcional qualidade de sua literatura e a agudeza de seu pensamento filosófico anterior e ela. E a proposta de Camus, também feita em elegante estilo literário, de sobrepor o homem ao partido e a ética à idéia é um guia para quem quiser desafiar a técnica do medo que, herdado do século passado, se inoculou no atual como um veneno para o qual a humanidade ainda não encontrou antídoto.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no "Caderno2" do jornal O Estado de S.Paulo.

José Nêumanne
São Paulo, 20/1/2003

 

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