|
Segunda-feira, 7/4/2003 Por um outro Da Vinci Alberto Beuttenmüller A mostra do Metropolitan Museum de Nova Iorque, com cento e vinte desenhos, e a pintura inacabada - São Jerônimo Rezando no Deserto - do acervo do Vaticano - do mestre italiano refaz a morbidez e o grotesco de sua personalidade, e a obsessão pela incompletude em sua obra. Até gênios são amaldiçoados. Em Da Vinci, a maldição veio em dose tripla: a sua noção de estar sempre falhando nos projetos, a referida incompletude da sua obra, maldição que o acompanhou a vida toda, e o tempo perdido em recuperar, justamente, o tempo perdido. - Diga-me, por favor, se algo foi terminado - era sua frase predileta. A exposição Da Vinci - Mestre Desenhista foi montada a partir de coleções vindas da Europa e Estados Unidos. A curadoria é dividida entre Carmen Bambach e George Goldner, respectivamente, curadora e presidente do departamento de desenho e gravura do museu. O catálogo é enorme, pesa quatro quilos, impossível de ser levado durante a visita. (Quem quiser acessar o site, clique aqui.) Raros projetos de Da Vinci foram findos; os escultóricos nunca foram completados. O molde gigantesco de argila a celebrar seu patrono - Ludovico Sforza - duque de Milão - restou uma montanha disforme; depois destruído pelos franceses, ao ocupar Milão. O mural comemorativo da vitória florentina - a batalha de Anghiari - se tornou uma ruína e acabou pintado por cima para esconder as falhas. Quase nada resta da sua A Última Ceia de Milão. A maldição perseguiu Leonardo pela vida toda. Seus escritos tiveram destino igual ou semelhante: nada do que escreveu foi editado em vida; o que nos ficou é uma massa de tratados e ensaios totalmente incoerentes, válidos apenas por sua caligrafia, mas sem qualquer sistemática ou método coerente. No campo da engenharia, os seus projetos, ou não deram em nada, ou sequer foram iniciados. Suas máquinas são belas no papel, mas não funcionariam na prática. Os engenhos aéreos - ornitópteros - assemelhados a helicópteros, jamais alçaram vôo. Pode-se dizer o mesmo do tanque de guerra, que deveria ser uma máquina mortífera e, ao que parece, não machucaria uma criança, já que mais parecia um brinquedo que arma de guerra. A verdade é que cada um de nós se vê de um modo diverso dos demais. Da Vinci não se via como artista, mas como engenheiro militar, se tivermos em conta o que escreveu para Luciano Sforza, em 1481, ao apresentar seu currículo. Na lista das suas próprias habilidades, Leonardo ressaltou que podia bombardear fortalezas, construir canhões, drenar fossos etc. No fim da carta, dizia que podia pintar tão bem quanto qualquer outra pessoa. É verdade que eram tempos de guerra, e um engenheiro militar era bem mais importante que um pintor. Mesmo assim, nos deixa perplexos a visão bélica de Da Vinci. Graças a Deus, no Metropolitan não há um só exemplo dessa visão guerreira, mas aí entramos em outro campo minado: o da personalidade de Leonardo da Vinci. A primeira questão é: se é um homem da Renascença italiana. Historicamente, ele viveu o período tido como Renascença, mas sua personalidade destoa dos contemporâneos. Da Vinci tinha uma curiosidade insaciável em campos não-artísticos, mais perto do que hoje se denominaria o campo científico. Os artistas renascentistas trabalhavam em técnicas diversas e diversificadas: entalhe, desenho, pintura, escultura, arquitetura, mas ainda assim no campo das artes. Nenhum deles se preocupou com leis físicas que regiam o mundo, ou com a dissecação de cadáveres, para melhor riscar a anatomia humana. Até no campo artístico, Da Vinci foi diferente dos seus pares renascentistas. Desenhou como ninguém e ninguém desenhou como ele. E havia bons desenhistas na época - entre os séculos 15 e 16 (Da Vinci nasceu em 1452 e morreu em 1519, na França). Nem mesmo Michelangelo foi capaz de ultrapassá-lo. O desenho de seus projetos escultóricos ou de anatomia provam este fato. Um desenho expressivo e ao mesmo tempo descritivo; seja um músculo, seja o retrato de um velho decrépito. Da Vinci via a beleza e feiúra como algo artístico. Sua personalidade era conflituosa, contraditória, difícil de compreender. O mistério de Da Vinci, de escrever de trás para frente e ao contrário se prende ao fato de ser canhoto, mas também porque tinha um cérebro privilegiado, cujo hemisfério esquerdo conversava com o direito e vice-versa. Era canhoto, mas tornou-se ambidestro, com o passar dos anos. Suas visões eram apocalípticas e, ao que parece, tinha uma atração mórbida pelo final dos tempos, da catástrofe. Mas desenhou como um deus e é isso que se pode sopesar no Museu Metropolitano de Nova Iorque, infelizmente, por pouco tempo. Nota do Editor Texto inédito, especialmente redigido pelo autor, para o Digestivo Cultural. Alberto Beuttenmüller é poeta, jornalista e crítico de arte (membro da AICA). Alberto Beuttenmüller |
|
|