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Segunda-feira, 28/4/2003
As deficiências do jornalismo não são só aquelas que vocês conhecem
Sérgio Augusto

Um clássico do jornalismo no cinema: 'A Primeira Página' ('The Front Page', 1974), de Billy Wilder, com Jack Lemmon

“Você conhece alguém mais infeliz do que eu?”

Pelas aspas dá para notar que a pergunta não é minha. Quem vive (ou vivia) perguntando isso aos amigos é o Millôr Fernandes. Na primeira vez em que ele me lançou esse repto, meu primeiro impulso foi responder: “Sim, conheço. Eu.” Mas segurei as pontas, disse outra coisa ou apenas sorri, pois nem de brincadeira ou por delicadeza eu consigo me dizer infeliz.

Será isso um carma, uma maldição às avessas, uma forma branda de esquizofrenia, uma manifestação de autismo incipiente? Ou apenas uma ilusão, uma defesa para ocultar a profunda sensação de infelicidade que me devora sem que eu, idiota, me tenha dado conta disso? Nunca fiz análise, a não ser sintática, mas já me consultei, informalmente, com vários psicanalistas, e mais de um deles me disse que a razão da minha felicidade foram uma infância e adolescência sem traumas memoráveis (não tenho culpa de ter sido filho único e neto único na Santa Teresa dos anos 40 e 50) – e, acima de tudo, a ventura de haver decidido na mais tenra idade o que iria ser quando crescesse.

Salvo por um fugaz flerte, ali pelos quatro, cinco anos, com a sedutora profissão de motorneiro de bonde, o jornalismo sempre foi a minha meta; tanto que aos dez eu já co-editava um tablóide mimeografado, a que demos o paródico nome de Sujeira da Imprensa, cujo slogan era “um jornal 0% educativo”. Não nego que adoraria ter me tornado um genial pianista, mas, como nunca estudei piano, essa fantasia jamais perturbou o meu real projeto profissional. É possível que eu tenha sofrido alguma influência do cinema americano e seus destemidos e heróicos repórteres, mas, se ela houve, foi subliminar.

Se nunca me decepcionei? Evidente que sim. Só os cretinos e conformistas não se decepcionam com a sua profissão, ao menos uma vez na vida.

Malgrado tudo, como dizem os franceses, volta e meia me assalta a paranóia de que posso ter errado de profissão, que em outra atividade eu poderia ter me saído infinitamente melhor, que escrever não é bem a minha, que poderia ter estudado biologia, por exemplo, e ser hoje uma sumidade mundial e ter até conquistado para o Brasil o seu primeiro Nobel. Agora é tarde para recomeçar o que quer que seja, muito menos biologia. E já que não dá mais para sair do jornalismo, só me resta torcer para que as circunstâncias em que o praticamos se aprimorem cada vez mais. Um nicho na Internet, só, não basta. Precisamos conquistar para a nossa profissão as mesmas regalias de outras. Pombas! Somos ou não somos o quarto poder? O futebol, a despeito de sua popularidade, não é nem o quinto.

Por que o Elio Gaspari, craque inconteste do jornalismo, não pode receber algum para sair à rua com um boné da churrascaria Tourão na cabeça e qualquer perna-de-pau do Botafogo pode? Por que o Janio de Freitas, como os automobilistas que ele tanto admira, não pode ser patrocinado por diversas empresas e até usar uma jaqueta cravejada de logomarcas?

A propósito dos 500 anos do achamento do Brasil, toquei na revista Bundas em algumas figuras, a meu ver, com perdão da palavra, emblemáticas de nossa história, como o Bacharel de Cananéia e o governador Luiz Vahia Monteiro, o Onça. Por já ter escrito sobre o Onça na revista Bravo!, fui gozado por um poeta amigo, que, sem levar em consideração os outros portugueses só mencionados no artigo de Bundas, lançou a suspeita de que eu, malandramente, contrabandeara textos de uma revista para outra. Os dois artigos eram diferentes, mas ainda que fossem idênticos, pergunto: e daí? Por que, diabos, um músico pode subir num palco e cantar pela enésima vez um tema do seu repertório – e até ser estrepitosamente aplaudido por isso – e nós, jornalistas, somos obrigados a apresentar sempre uma obra inédita? Isso não é justo.

Gostaria de poder repetir os meus modestos hits, em especial os que já caíram no esquecimento e aqueles que, porventura, tenham deixado saudade em alguns leitores. Tenho certeza de que diversos leitores de Bundas, Bravo!, do Estado de S. Paulo e onde mais venho me apresentando (viram como já incorporei o jargão dos artistas?) apóiam essa reivindicação, e não me surpreenderia se alguns deles até me fizessem pedidos, como as platéias costumam fazer com os músicos. Também lastimo não me beneficiar de um recurso equivalente ao play-back a que os músicos recorrem a torto e a direito – e sem oferecer qualquer abatimento no preço do ingresso! Se se aceita que um cantor entre em cena e, rigorosamente, nada cante, apenas acompanhe com movimentos labiais a sua própria voz pré-gravada, por que nós, jornalistas, além da obrigação de produzir sempre um texto novo, ainda temos de digitá-lo com nossos próprios dedos?

O scanner e o comando ctrl + c (vulgo control-copy) seriam o play-back do jornalista. A gente abriria e marcaria um texto na tela do monitor, teclaria ctrl + c, alt + tab + z, e o reabriria em outra página, destinando-o a outra publicação. Vou dar um exemplo:

Seus personagens favoritos foram criados por Pirandello, Molière, e Feydeau, mas ele teve de se contentar com os que autores menos nobres criaram, alguns especialmente para ele, o que não deixa de ser uma glória. Nas telenovelas de Gilberto Braga, seu mais fiel Molière, há quase sempre um papel sob medida para a sua distinta figura – geralmente um varão de fino trato, culto, inteligente, bonachão e ranzinza. Não foi esse o José Lewgoy que as gerações mais antigas aprenderam a admirar, mas, como seus amigos podem atestar, é esse o José Lewgoy que mais se casa com o perfil do ator, certamente o mais refinado e cultivé que já tivemos. O único, que eu saiba e conheça, capaz de discutir cinema, teatro, literatura, artes plásticas, balé e música de igual para igual com especialistas de cada uma dessas áreas. E às vezes levando vantagem.

Isso aí era o lead de um perfil do Lewgoy que publiquei na revista República. Quantos de vocês o leram? Quantos gostariam de ler o resto? Tsk, tsk, vão ficar na vontade. Nem em disquete ele será reeditado. E em CD, então, nem pensar. Profissãozinha limitada, essa nossa.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Bundas, em sua edição de 11 de julho de 2000.

Para ir além





Sérgio Augusto
Rio de Janeiro, 28/4/2003

 

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