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Segunda-feira, 5/5/2003 Francis Ponge, garimpeiro dos sonhos Pedro Maciel Francis Ponge é, por excelência, o poeta das coisas que exigem definições, das coisas partidas, das coisas naturais, das coisas inanimadas e animadas. Ele descreve o universo, os meteoros, a chuva, o fogo. Encanta-se com os moluscos, ostras, caracóis. Busca a todo momento dar voz às coisas silenciosas. Traz à luz o mundo mágico da natureza. No Proemas, Ponge diz que “o homem julga a natureza absurda, ou misteriosa, ou madrasta. Bem. Mas a natureza não existe a não ser pelo homem”. Ele projeta, idealiza o homem harmonizado com os quatro elementos: a terra, o fogo, a água e o ar. Os breves e apaixonados 32 textos de “O Partido das Coisas” (Ed. Iluminuras), escritos entre 1924 e 1939 são um exercício lúdico, uma tentativa de fundação de um novo humanismo. Em Caracóis, o poeta filosofa: “Mas qual é a noção própria do homem: a palavra e a moral. O humanismo”. Segundo Michel Peterson, no texto de abertura de O Partido do Poeta, a poesia pongiana qualifica-se como “científica e sensual, descritiva e proverbial, anarquista e pompidouística, barroca e clássica, preciosa e natural, objetivista e autobiográfica, narcisista e cética, analítica e prolixa, mimética e inventiva, concretista e abstrata, formalista e gnômica, protestante e auto-irônica”, e tudo mais que o leitor quiser espreitar desses sonhos reflexivos e oraculares. O poeta do ciclo das estações é um garimpeiro dos sonhos, da lembrança submersa, da escritura das metáforas, das imagens da vigília que nos inspiram sentimentos. Ponge descreve, aproxima, contempla as coisas que se fragmentam e morrem. O tema da morte trespassa quase todos os poemas. É a partir do verbiário da morte, da “palavra em estado nascente”, que o poeta descreve os objetos e os seres do mundo, decanta o saber e a verdade das coisas que morrem e renascem. O Partido das Coisas tornou-se um clássico da poesia francesa. Ponge é herdeiro da tradição da poesia científica do século XVI e, especialmente, das “pequenas invenções” de Rémi Belleau. Nem toda a crítica reconhece que a fusão entre poesia e ciência na poesia pongiana iria muito além da precisão lexical das descrições e do recurso sistemático à etimologia. O poeta das definições e dos provérbios, da linguagem em êxtase, da poética do tatear, propõe uma reflexão da escritura e da palavra. A presente coletânea, aberta com a epígrafe de Christian Bobin, diz que “o pardal Ponge pousou em 27 de março de 1899 no rebordo do mundo. Levantou vôo em 6 de agosto de 1988. Deixou sua canção perto de nós, no frescor da noite. Sua luz de canto puro”. Ponge é antes de tudo um poeta que sobrevoa o instanteluz das coisas, um pássaro que alça vôo antes das coisas se desfazerem, antes do sol encarnar-se nas nuvens sombrias; um pássaro que “se voa, traça signos de fogo no céu; se cai, deixa uma cauda de sons na terra: ouvimos seu rumor mas não vemos sua forma”. As Amoras; O Partido das Coisas, de Francis Ponge Nas sarças tipográficas constituídas pelo poema numa estrada que não conduz para fora das coisas nem ao espírito, certos frutos são formados por uma aglomeração de esferas que uma gota de tinta preenche. Pretos, rosados e cáqui juntos no cacho, oferecem antes o espetáculo de uma família arrogante em suas idades diversas do que uma vivíssima tentação para a colheita. Vista a desproporção entre as sementes e a polpa os pássaros os apreciam pouco, tão pouca coisa no fundo lhes resta quando do bico ao ânus são por eles atravessados. Mas o poeta, no curso de seu passeio profissional, colhe um grão exemplo com razão: “Assim, pois, diz consigo, frutificam em grande número os esforços pacientes de uma flor mui frágil embora por um rebarbativo emaranhado de silvas defendida. Sem muitas outras qualidades, - amora, perfeito, madura se amora - como também este poema é feito.” O Fogo; O Partido das Coisas, de Francis Ponge O fogo estabelece uma classificação: primeiro, todas as chamas se encaminham em uma direção... (Só se pode comparar a andadura do fogo à dos animais: é preciso que desocupe este lugar para ocupar aquele outro; caminha a um só tempo como ameba e como girafa, o pescoço Pa frente, os pés rampantes)... Depois, ao passo que as massas metodicamente contaminadas se aniquilam, os gases liberados vão-se transformando numa só rampa de borboletas. Nota do Editor Ensaio gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no caderno "Prosa & Verso", do jornal O Globo, em dezembro de 2000. Pedro Maciel |
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