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Segunda-feira, 20/10/2003 O cinema segundo Borges Pedro Maciel "Quem ousaria ignorar que Charles Chaplin é um dos deuses mais seguros da mitologia de nosso tempo, um colega dos imóveis pesadelos de De Chirico, das ferventes metralhadoras de Scarface Al, do universo finito - mesmo que ilimitado - das costas zenitais de Greta Garbo, dos velhos olhos de Ghandi?", perguntava Jorge Luis Borges em 1931, na nota intitulada "Filmes". O poeta e ficcionista Borges profetiza em 1941: "Atrevo-me a suspeitar, porém, que Cidadão Kane perdurará como 'perduram' certos filmes de Griffith ou de Pudovkin, cujo valor histórico ninguém nega, mas que ninguém se resigna a rever. Sofre de gigantismo, de pedantismo, de tédio. Não é inteligente, é genial, no sentido mais noturno e mais alemão dessa má palavra." Estes e outros comentários sobre Cinema e sua magia estão na compilação das críticas publicadas nas revistas Sur e Discussão entre 1931 e 44. Borges em / e / sobre cinema (Ed. Iluminuras), organizado por Edgardo Cozarinski, cineasta, crítico e antes de tudo borgeano, é um livro admirável, porque Borges expõe a sua idéia de cinema ao abordar a narrativa. O livro ainda fala sobre filmes clássicos e sobre diferentes aspectos da linguagem cinematográfica. Para o poeta e ficcionista, o cinema é um repertório de referências, assim como a Encyclopaedia Britannica. Borges reconhecia em 1935, no prólogo da primeira edição de História universal da infâmia, que as influências que o inspiraram para criar esses "ambíguos exercícios", "derivam, creio, de releituras de Stevenson e Chesterton e também dos primeiros filmes de Von Sternberg e talvez de certa biografia de Evaristo Carriego. Abusam de alguns procedimentos: as enumerações díspares, a brusca solução de continuidade, a redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas". A encenação verbal, o "aspecto plástico da literatura", o procedimento cinematográfico da montagem e a "continuidade de figuras que cessam", sugerem o método adotado por Borges para narrar muitas de suas histórias imaginárias. Toda a literatura fantástica de Borges pode ser lida sobre o prisma da superfície de imagens. Borges no cinema foi espectador, crítico, vítima de adaptações absurdas e autor de roteiros. Ele é referência para vários cineastas e críticos. Pode-se ler desde uma resenha de Luigi Faccini na revista romana Cinema & Filme, em 1967, contrapondo o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, com "O Aleph", narrativa da qual o autor expõe a dificuldade de conseguir "a enumeração, mesmo parcial, de um conjunto infinito". Segundo o resenhista, "não é estranho que essa frase de Borges defina completamente as razões filosófico-estruturais do filme", e prossegue afirmando que Terra em Transe é "um aleph desfocado e infinitamente finito (...) dentro do qual se movem inumeráveis alephs regressivos." Nos anos 70, a arte e o gosto literário eram motivos de debate ideológico e semiológico. Pode-se não entender muito bem o que esses novos cientistas estavam articulando mas a palavra de ordem era a semiologia, ciência que estuda os signos e sinais utilizados em comunicação. Godard, em Alphaville, de 1965, cita Borges através da voz rouca de uma máquina que anuncia a sociedade futura: "O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me despedaça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo". Há muitas outras citações da obra de Borges no cinema europeu. Há também versões e "perversões", adaptações de suas narrativas e argumentos originais, que nem sempre agradaram ao autor, como Dias de Ouro, filmado com roteiro de Borges. Hombre de la esquina rosada, baseado no conto homônimo de Borges, também não o agradou, assim como Emma Zunz, filme francês de 1969. Borges em / e / sobre cinema é um livro imprevisível e surpreendente, porque o autor mistifica os leitores ao comentar filmes que estão inseridos na história universal do cinema. O estilo e a erudição de suas breves críticas revelam a construção de sua estética. Apesar de que, no prólogo do livro Elogio da sombra, Borges anota que "não sou possuidor de nenhuma estética. (...) Descreio das estéticas. Em geral, não passam de abstrações inúteis..." Quase tudo já se falou do escritor que conta a história da eternidade. Do ensaísta que se transforma em contista, do historiador que recupera o memorialista, do biógrafo que inventa o ficcionista, do poeta que sucede ao lingüista. Ainda não se falou do crítico de cinema que sugere argumentos, do crítico com vocação de mitógrafo, do inventor da tradição, e ainda do crítico que traça paralelos entre a narrativa cinematográfica e a narrativa literária, como na nota sobre o filme O Delator, de John Ford. Segundo Borges, Ford merece uma censura, porque correu o belo risco de ser inteiramente satisfatório e não conseguiu sê-lo por duas ou três razões: "A primeira é a excessiva motivação dos atos de seu herói. Compreendo que o objeto perseguido seja a verossimilhança, mas os diretores cinematográficos - e os romancistas - costumam esquecer que muitas justificativas (e os muitos pormenores circunstanciais) são contraproducentes. A realidade não é vaga; é vaga nossa percepção geral da realidade. Daí o perigo de justificar demasiadamente os atos ou inventar muitos detalhes." É conhecida sua desconfiança em relação ao romance, sua aversão por narrativas extensas: "Desvario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma idéia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos. O melhor procedimento é simular que esses livros já existem e oferecer um resumo, um comentário". Nota-se em seus comentários sintéticos, que Borges sentiu profundamente os filmes e cada uma de suas reflexões revela a inesgotável magia da arte cinematográfica. Pode-se afirmar que esta coletânea de críticas é mais um exemplar de tão singular escritor. Nota do Editor Ensaio gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no jornal O Globo, a 1º de setembro de 2001. Para ir além Pedro Maciel |
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