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Segunda-feira, 15/12/2003 Achtung! A luta continua Sérgio Augusto Hitler novo na praça. Não estou, em absoluto, aludindo ao Bush. Primeiro, porque ele não é um novo Hitler. Segundo, porque novo ele também não é. O novo Hitler a que me refiro é uma metonímia. Falo de seu novo livro, da continuação de Minha Luta, que chegou a ser escrita pelo Führer mas não se intitula Mein Kampf-Teil 2, der Auftrag (Minha Luta—Parte 2, a Missão). Seu título em inglês, o único de que disponho no momento, é Hitler’s Second Book: The Unpublished Sequel to Mein Kampf, ou seja, O Segundo Livro de Hitler: A Continuação Inédita de Minha Luta. Assim saiu em outubro por uma pequena editora americana (Enigma Books), com introdução e notas do prof. Gerhard L. Weinberg, mestre em história do século passado na Universidade da Carolina do Norte. David Irving, aquele que há 20 anos forjou os diários de Hitler e os vendeu por US$ 3 milhões à revista alemã Stern, não teve nada a ver com a descoberta dessa relíquia nazista, encontrada numa velha fábrica de torpedos em Alexandria, na Virginia, e chancelada por vários historiadores, inclusive pelo respeitável scholar Ian Kershaw, autor de uma biografia do Führer. O New York Times deu destaque ao lançamento, embora o livro não seja propriamente uma novidade, estava apenas esgotado—desde o começo dos anos 60. Editado em 1961 pelo Instituto de História de Contemporânea de Munique e meses depois (mal) traduzido, dizem, para o inglês, pela Grove Press, com o título de Hitler’s Secret Book (O Livro secreto de Hitler), sumiu como por encanto do mercado. Segundo o New York Times, é leitura das mais bocejantes. Os textos do velho Adolf são um tédio só. Acontece que o homem, sendo quem foi, merece atenção e destaque de best seller. Se bem que seu status como campeão de vendas suscite controvérsias. A continuação da bíblia nazista, ditada por ele entre o final de junho e o início de julho de 1928, só não ganhou uma lombada com o autor ainda vivo por causa do relativo fracasso de vendas do segundo volume de Mein Kempf, lançado em 1927. Temeroso de um encalhe, Max Amann, diretor da editora Franz Eher Verlag, aconselhou o autor a guardar os originais para outra oportunidade. Em 1928, os nazistas estavam meio por baixo. Haviam perdido muitos votos nas eleições daquele ano por causa da posição de seu líder com relação ao sul do Tirol, um dos maiores redutos da extrema-direita. Visando a uma aliança com Mussolini, Hitler defendia o estabelecido no tratado de paz assinado depois da I Guerra Mundial; ou seja, a transferência do sul do Tirol, antes austríaco, para a Itália. Essa questão é um dos assuntos abordados em Hitler’s Second Book. A aliança com a Itália era vital para os planos mais ambiciosos que o futuro chanceler alemão tinha em mente. E o mais ambicioso de todos era uma guerra contra os EUA. Estranho que a continuação de Minha Luta tenha sido publicada na Alemanha (já lá se vão 42 anos) e a obra que a tudo deu início continue proibida em todo o território nacional. Juntou-se o absurdo ao despautério. Há dois anos, a dramaturga Julia Pascal, judia e autora de uma Trilogia do Holocausto, tomou coragem e discutiu publicamente essa delicada pendenga, no semanário inglês The New Statesman. A proibição, segundo ela, é inócua. “Mais do que isso, contraprodutiva”, acrescenta, receosa de que ainda haja muito dente para o proibido aguçar. Muitos judeus, alemães ou não, concordam com ela. “Banir e queimar livros é coisa de nazista”, lembrou na época o cineasta Luke Holland. Curvando-se também ao primado da liberdade da expressão, Ian Kershaw admitiu ser favorável à liberação de Minha Luta, desde que se faça uma edição editada, com comentários sobre as conseqüências da luta preconizada e insuflada no livro. Ebehard Jackel, a maior autoridade alemã na obra de Hitler, concorda integralmente com Kershaw: “Para que proibir um texto que pode ser lido, na íntegra, na internet?” Dizer que o nazismo é algo enraizado no solo alemão não é uma metáfora. Quando ruiu o 3º Reich, milhares de alemães, cautelosamente, enterraram seus exemplares de Mein Kampf no quintal. Havia uma cópia do livro em quase todos os lares teutônicos. Só em 1942 foram vendidos seis milhões de exemplares, boa parte comprada pelo Estado, que os distibuía como presentes de núpcias. Nenhuma família do Reich dava seus primeiros passos sem o lero-lero do Führer sobre a supremacia ariana e a inferioridade racial dos judeus. Hitler ganhou uma fortuna de direitos autorais. “Só a Bíblia vende mais, mas a Bíblia é uma obra coletiva e Mein Kampf foi escrita por um único autor”, gabava-se o único autor de Minha Luta, alinhavada na prisão de Landsberg am Lech, na Baviera, onde Hitler foi trancafiado após o abortado Putsch da cervejaria. Marco Polo, Voltaire, Cervantes, Daniel Defoe e Oscar Wilde também produziram livros vendo o sol nascer quadrado, mas nenhum deles tinha o talento de Hitler para amontoar besteiras. Pretensioso e empolado é o mínimo que se pode dizer de Minha Luta, ressentida e repetitiva catilinária anti-semita, contendo todos os diabólicos planos de extermínio (de judeus, deficientes físicos e outros “racialmente inferiores”) implementados depois que o líder nazista empalmou o poder. Além de mudar seu título (Hitler queria Uma Luta de Quatro Anos e Meio Contra Mentiras, a Estupidez e a Covardia—até para dar título ele era ruim), o editor Max Amann deu-lhe uma copidescada para disfarçar a pouca intimidade do autor com a arte de escrever. Ainda assim muita asneira ficou. Joachim Fest, o mais célebre biógrafo de Hitler, selecionou algumas. Uma das melhores é esta reflexão sobre a miséria: “Quem ainda não se viu preso entre as garras dessa víbora que o enlaça jamais saberá o que são seus dentes envenenados”. Como se víboras fossem dotadas de garras e serpentes que podem enlaçar um homem tivessem e precisassem de dentes envenenados. Mein Kampf saiu primeiro na Tchecoslováquia, em 1936. A editora britânica Hutchinson o traduziu em 1939. Não foi só na Alemanha que o livro virou anátema depois da derrocada nazista. Na Hungria, Israel, Letônia, Noruega, Portugal, Suécia, Suíça e em outros países de maior e menor expressão, até sua venda em idioma estrangeiro é proibida. Também o baniram de nossas livrarias durante a ditadura militar, mas, ao contrário do que ocorreu com outras obras consideradas subversivas, nenhum editor interessou-se por relançá-lo. Sua venda, porém, não está proibida entre nós. Salvo engano, só na Inglaterra, EUA, Rússia, Checoslováquia e Romênia Minha Luta é tolerado e editado regularmente, sendo que a reedição tcheca, entregue às livrarias em março de 2000, largou com uma tiragem de 10 mil exemplares, elevadíssima para os padrões locais. Paranóicos, tremei! Durante a guerra, o governo americano, amparado pelo Tratado de Comércio com o Inimigo, embolsou mais de US$ 20 mil em direitos autorais sobre a obra. Em 1979, o crédito bateu nos US$ 140 mil. Foi quando a editora Houghton Mifflin ofereceu ao governo mais de US$ 35 mil para ficar com os direitos de tradução. Como as vendas da edição americana vão além de 15 mil exemplares por ano, a Houghton Mifflin ganhou um dinheirão. Questionada sobre a lisura de tal negócio, decidiu doar todo o lucro para instituições de caridade. Na Inglaterra, onde vende 3 mil exemplares por ano, Minha Luta saía, até pouco tempo, com a palavra vile (desprezível) impressa na capa. A versão mais recente, com o selo da Pimlico, optou por um anagrama de vile: evil (mal). Quem lá na verdade cuida dos direitos sobre o livro é a agência literária de Curtis Brown, que ao longo de 25 anos transferiu cada centavo obtido nas vendas para uma instituição mantida, até junho de 2001, sob o mais rigoroso anonimato. Os cobres iam direto para a conta do Conselho de Bem-estar Alemão, órgão responsável pelo conforto de refugiados judeus nascidos na Alemanha. O Führer deve estar se revirando na tumba. Já com poucos refugiados para sustentar, os gestores do fundo decidiram repassar os últimos lucros sobre as vendas (cerca de 250 mil libras) à Random House, atual proprietária da Hutchinson. Como a Random House foi comprada pelo conglomerado alemão Betelsmann, criou-se uma situação das mais irônicas: os alemães estão proibidos de editar Mein Kampf em território alemão, mas no exterior, barra limpa. A liberação de Mein Kampf na Alemanha não provocaria apenas polêmicas—especialmente no que diz respeito à promoção do livro na mídia—mas também discussões de ordem legal. Afinal de contas, a quem de fato pertencem os direitos da obra? Em princípio, ao estado da Baviera, que confiscou todos os bens do ogro nazista e só não controla os direitos sobre as traduções em língua inglesa. Mas o confisco é eterno? Se não for, como alegam alguns juristas alemães, beneficiário da propriedade intelectual de Hitler é o que não falta. O Führer deixou uma irmã, Paula, um meio-irmão, Alois, e uma meia-irmã, Angela. A maioria dos bisnetos e sobrinhos-netos vive, discretamente, na cidade (Linz) onde Hitler nasceu. Os herdeiros de Alois moram em Long Island, na costa leste dos EUA. Se a Alemanha suspender a censura, eles entrarão numa bolada, estimada, pelo alto, em 3 milhões de libras. “É dinheiro sujo, não quero”, adiantou uma sobrinha-neta. Talvez seja uma exceção na família, que possui em seu seio pelo menos dois pilantras: Alois e sua mulher irlandesa, Brigid Elizabeth Dowling. Em 1953, com as lembranças da guerra ainda mais vívidas, Alois faturava algum vendendo fotos “autografadas” do meio-irmão a turistas em trânsito por Manhattan. Brigid empurrou um livro de reminiscências sobre o cunhado esquisitão para diversas editoras americanas. Como era mais a favor do que contra o meio-irmão do marido, nenhuma se interessou. Werner Maser não é da família, mas também está de olho na cornucópia. Tanto que declarou aos jornais a seguinte pérola: “Os judeus e os que foram condenados a trabalhos forçados pelos nazistas já foram ressarcidos. Chegou a nossa vez”. Maser, um espertalhão que até por judeu já se fez passar, arvorou-se de algo que, concretamente, não existe: administrador do espólio de Hitler. Quem administra o espólio do Führer é o Estado alemão. Do finado Adolf ele só tem uma coisa: a empáfia. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado n' O Pasquim 21, a 24 de junho de 2003. Sérgio Augusto |
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