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Segunda-feira, 22/3/2004 A editora D'Avila e a revista Bravo! Wagner Carelli Foi com dor no coração que eu soube do fechamento da D'Avila, algo como perder alguém muito querido. A notícia encerrou com um acréscimo inesperado de tristeza um ano duro, de perdas irreparáveis. Perdi minha mãe no começo de 2003, em meados do ano perdi meu querido amigo e irmão e parceiro de inúmeras jornadas Andrea Carta, e no final vi perder-se essa empresa que foi minha "mãe" profissional. O "pai" Mino Carta me deu tudo que sei em jornalismo; a "mãe" D'Avila me deu as maiores oportunidades de aplicar o que sabia. Reputo meu trabalho lá como o melhor que fiz em toda uma longa carreira no jornalismo profissional, que já era longa quando tive a honra e o privilégio de ser professor na FAAP (e a D'Avila veio bem depois). Imaginei que ficaria por lá uns 20 anos. Sairia quando o Felipe já fosse de longa data considerado o Victor Civita do novo milênio, uns oito anos depois da Abril ter sido encampada pela D'Avila... Recusei cinco excepcionais ofertas de trabalho, na verdade nem quis ouvi-las, porque era de uma obstinação calabresa no que, tinha certeza, seria o futuro glorioso da empresa e o meu futuro profissional. Uma dessas ofertas foi feita quanto eu já estava com a cabeça cortada ― sem saber, claro. E apesar de ter "sido saído" da editora de uma forma que para mim foi muito penosa ― sabotado por colegas que não tinham trabalho em lugar algum e que lá empreguei; traído com brutalidade, sordidez e covardia que imaginava inconcebíveis, impossíveis mesmo num chamado ser humano, que veio a ser o mais torpe que conheci no métier em 31 anos de jornalismo -, não tenho como deixar de reconhecer que tive lá meu emprego mais importante, que tive lá condições excepcionais de trabalho, que lá ajudei a fazer um belo pedaço da história do jornalismo brasileiro, e que lá fui muito bem pago. Gostaria muito de ter visto o Felipe tornar a D'Avila grande ― pra mim, teria sido um prêmio. Os "saídos" de empresas costumam deleitar-se quando as empresas "dançam"; eu não ― pelo menos neste caso, não. Tinha tanto de mim lá que não poderia deixar de achar que aquilo era meu, também, e seria sempre; gostaria que a D'Avila tivesse permanecido por gerações de D'Avilas. Por circunstâncias que Eduardo Ribeiro e J&Cia acompanharam, na época ― as da construção e implosão da primeira redação da República (acho que daí veio o karma que tive de pagar depois) -, o Luiz Felipe D'Avila e eu ficamos sozinhos na redação, completamente dependentes um do outro. Ele fez em mim a aposta profissional mais corajosa e arriscada que já vi alguém fazer em uma única pessoa ― eram todos os outros ou eu, assim lhe foi colocado, e ele ficou comigo. Tínhamos os dois essas responsabilidades imensas ― ele para com a empresa, o mercado, a família, os amigos, a quem precisava ver justificada uma decisão que pra qualquer outro parecia maluca; eu para com ele por ter tomado essa decisão. Tínhamos uma editora pra tocar, uma revista pra fechar, e ninguém que quisesse trabalhar conosco. Foi a melhor coisa que aconteceu, porque aqueles que por fim apareceram pra trabalhar realmente queriam fazê-lo, e ali, naquela revista, conosco; essas pessoas se dedicaram de uma forma muito especial, engajaram-se amorosamente no trabalho, e as revistas que surgiram depois tiveram essa marca de empenho afetivo único, que não experimentei em nenhum lugar onde tivesse trabalhado, e que fez delas as melhores e mais bonitas revistas do país. Desse grupo, quatro pessoas foram diretamente responsáveis pela concepção dos excepcionais produtos que a D'Avila colocou no mercado em seguida ― Bravo!, MorumbiFashion, a "segunda" República e Sabor: o Felipe, a Noris Lima, o Edu Simões e eu. Eu costumava dizer que se uma dessas pernas se quebrasse, a mesa jamais voltaria a ficar em pé. A Bravo! surgiu em outubro de 1997, ano da morte do Francis, como uma "costela" da República, que tinha por subtítulo justamente "o prazer da política e as políticas do prazer". A seção das "políticas do prazer" era basicamente o que viria a ser a Bravo!. Falava-se aí de cultura mas não de uma forma meramente expositiva, informativa ― não era agenda, era ensaio cultural. O espírito da Bravo! foi esse, o ensaístico-crítico que não deixava de lado a agenda ― só que a agenda era ensaístico-crítica também. Tudo feito com excepcional ousadia. O Felipe conseguiu levantar o patrocínio que garantiria um ano de vida da revista sem levar projeto algum aos potenciais patrocinadores. Nós não tínhamos condições de fazer projeto, éramos poucos e a grana também era escassa. Ele mostrava a República para os caras e dizia que "agora quero lançar uma revista cultural, e vai sair em outubro". Todo o mundo empresarial o conhecia e o tinha em boa conta, o pessoal acabava convencido de que ele faria mesmo a revista, que seria boa, e botava a grana. A aposta, obviamente, era mais no Felipe do que numa revista que não existia e que nem dava pra enxergar pronta. Só o Felipe poderia viabilizar a Bravo!, ninguém mais. Assim que as cinco cotas foram vendidas nós começamos a projetar a revista ― nem um minuto antes. Só que já era setembro, e o Felipe tinha prometido a revista para outubro... Tínhamos decidido o nome uma semana antes ― o nome era do Luís Carta, e eu pedi pro Andrea, filho dele, autorização pra usar. O Luís achava que Bravo! seria um excelente nome de revista, e chegou a registrá-lo, mas não sabia que revista teria esse nome ― e nunca a fez. Eu achava que esse era o único nome possível para a revista que viríamos a fazer. E o Andrea, meu bom e querido amigo, me deu mais essa colher: autorizou que o usássemos. Fizemos a revista toda, todo o projeto editorial e gráfico, todas as matérias, todo o fechamento, tudo, até os fotolitos, em 23 dias. Tinha seções detalhadíssimas e muito sofisticadas, um folder complicadíssimo com um diagrama em cortes laterais do MASP, que fazia 50 anos, uma grade editorial extensa e obrigatória em cinco seções enormes ― eram cinco revistas em uma. Até hoje não sei bem como fizemos aquilo. A Noris ia à minha sala com as mãos suadas, sentava-se à minha frente, chorava, dizia que nunca poderia imaginar que eu pudesse submetê-la a tais torturas; depois não conseguia se levantar, os joelhos tremiam, eu precisava levá-la mais ou menos no colo, o que não chegava a ser um desprazer. Eu dizia: "Finge que você está brincando de fazer revista. É isso: tamos brincando de fazer a revista que sempre quisemos fazer, a mais bonita, a mais gostosa, a mais inteligente". Dormíamos pouquíssimo. Achamos que não haveria assunto suficiente no país pra fazer a primeira pauta e pautamos Nova York, Paris, Tóquio. Depois precisamos jogar quase tudo fora, porque a quantidade de eventos culturais de importância mundial entre São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Porto Alegre era enorme. Convidei seis pessoas muito conhecidas e distintas pra dirigir a redação, com excelente salário, nenhuma aceitou. Eu assumi a direção, que acumulei com a da República. A primeira redação da Bravo! também se desintegrou, como a da República ― só que com dez dias de trabalho. Teve um cara muito conhecido que me ligou pra dizer que estava na Rebouças, o trânsito estava muito ruim e ele não iria mais. "Ok", eu disse, "então volta pra casa e nos vemos amanhã". "Você não entendeu", disse o cara, "eu não vou mais, tô fora". Fizemos tudo em seis pessoas, todas elas saídas de República. Fechamos às seis da manhã do 23º dia, depois de um pescoço que vinha das duas noites anteriores. Só eu estava na redação, a primeira, ainda na rua Hungria. Todas as páginas da revista estavam montadas em uma das paredes. Eram magníficas. Eu olhava embasbacado pra elas da minha cadeira quando me pareceu ouvir um concerto sair da parede, por trás daquelas páginas, algo beethoveniano; achei que estava doido, que era efeito do pescoção, mas não liguei: eu me levantei e comecei a reger a música daquela parede sonora e de um visual maravilhoso, em êxtase diante do resultado daquela construção amorosa, como nunca havia imaginado que um punhado de colegas pudessem erguer, como nunca pensei que o jornalismo brasileiro pudesse projetar. Jamais senti tanta satisfação por ser um jornalista, tanto orgulho por minha profissão, tanta admiração pela capacidade dos meus companheiros, tanto carinho deles para com o trabalho que escolheram fazer em suas vidas, e tanta solidariedade entre eles. A música aumentava e deslocou-se, e entrou na redação o boy com um radião no ombro, ligado na rádio Cultura. Era de lá que vinha a música. E boy da Bravo! ouvia música de concerto. Ele me flagrou em meio à regência e eu congelei, envergonhado. Ele aumentou o volume e me disse: "Manda aí, mano. Tá cool". A revista foi pras bancas numa segunda-feira. Na terça-feira, as bancas da região dos Jardins ligavam pra pedir reposição de muitas centenas de exemplares, que eram exibidos à frente de todas as outras revistas. Os jornaleiros eram unânimes em dizer que aquela era a revista mais bonita já feita no Brasil. Não tínhamos esquema de assinaturas montado, mas ao cabo da primeira semana já se somavam quase 200 pedidos ― o pessoal procurava o número do PBX lá embaixo do expediente, pequenininho, e ligava reservando sua assinatura "pra quando tivesse". Foi um sucesso instantâneo e totalmente espontâneo, sem que nenhuma publicidade fosse feita, sem que o mercado fosse avisado, sem nem sequer uma notinha aparecesse nos jornais, nada, nada. Em novembro, com apenas dois números, ganhamos dois prêmios muito importantes ― não lembro quais ― de melhor lançamento do ano. Recebemos mais de cem cartas nos dias que se seguiram ao lançamento, todas de elogios derramados, de pessoas preocupadas com o futuro da revista ― tínhamos poucas páginas de anúncios, praticamente só as dos cotistas, na primeira edição. De ricas madames a pobres estudantes universitários, todo o mundo lia a revista, comentava, pautava-se por ela. O mais incrível: os jornais diários passaram a pautar suas seções culturais por aquela revista mensal. O Felipe foi o primeiro e único publisher do país a querer fazer revista cultural. Ele tinha acabado de voltar da Europa, onde completara anos de uma formação da maior qualidade, e queria fazer revistas como as que ele gostava de ler lá fora ― aqui ele não tinha revista para ler. Eu sempre disse que se eu levasse pra Abril naquela época o projeto de uma revista cultural como o da revista que acabamos fazendo ― 164 páginas em couché 90g, capa em couché 270g, quatro cores, abertura com uma seção altamente intelectualizada escrita pelos mais sofisticados pensadores culturais do país, sem falar de música popular, sem falar de televisão ― os caras chamariam a segurança pra prender aquele batedor de carteiras. A Bravo! incomodou a Abril de uma forma impensada. Eles tinham lá aqueles programas de formação de profissionais ― como é mesmo o nome? ― que hoje toda grande empresa editorial tem, e no final do curso essa moçada sempre perguntava pros diretores da empresa: "Por que é que a Abril não tem uma revista como a Bravo!? Por que é que não saiu da Abril a idéia de lançá-la?" Os diretores ficavam muito contrangidos e não sabiam o que responder. Ao final desses cursos, os jornalistas-to-be dividiam-se em grupos para criar diferentes revistas. E os orientadores diziam: "Só não vale revista cultural". Era o que todo o mundo queria fazer. É uma ironia que a revista tenha acabado lá. Que seja um sucesso ― mas do jeito que nasceu para ser, tratando cultura como se deve. Isso significa tratá-la, a cultura, não como "entretenimento", mas como sentido da vida, o que Aristóteles propunha como única possibilidade de satisfação do espírito humano. Pode parecer grandiloqüente, mas esse foi o projeto da Bravo! e a razão de seu sucesso. A seção mais lida e comentada era justamente a mais "difícil", a seção "Ensaio", que reunia sem concessões, sem panelas, a inteligência mais aguda do país. Os verbos aqui estão no passado porque nunca mais li a Bravo! desde que saí da D'Avila, não sei o que fizeram dela, soube que inauguraram uma seção de TV, o que me pareceu desastroso, e notei que a revista passou por uma reformulação gráfica muito competente, obra da Noris. Mas a Bravo! não pode ser "apenas um rostinho bonito". Foi seu conteúdo brilhante, seus textos longos e abundantes em total contrapartida à tendência geral da imprensa, toda presa ao dogma falacioso segundo o qual "ninguém lê nada", que fez da revista um sucesso ― editorial e comercial: a revista chegou a ter 52 páginas muito bem pagas de anúncios, e fez vários projetos especiais que rendiam muito bem, sem conceder sua opinião e orientação em uma única linha, que fosse. Todo investimento que se fizesse lá tinha retorno. Quem sabe a Bravo! venha a redimir a Abril da pasteurização a que submeteu o mercado editorial brasileiro de revistas. É difícil, mas o Felipe está lá, e quem sabe a minha obstinada fé calabresa na D'Avila não venha a fazer sentido, ainda? Vai ver a Bravo! acaba por encampar a Abril. Concretamente ― ou em espírito, que seja. Seria bom pra todo o mundo. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na coluna de Eduardo Ribeiro no portal Comunique-se, o qual autorizou a repodução no Digestivo Cultural. Wagner Carelli |
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