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Segunda-feira, 27/5/2002
Assim rasteja a humanidade
Sérgio Augusto

No antigo Egito havia pragas terríveis, como ratos e gafanhotos; nós temos celebridades televisivas. Convidadas, indistintamente, para tudo, até para eventos onde em princípio deveriam se sentir mais deslocadas do que um vegetariano numa churrascaria ou o papa numa bacanal, não perdem uma boca-livre, são pragas onipresentes, “parasitas do filé-mignon”, para usar a deliciosa qualificação de Robert Benayoun para certos comensais da burguesia parisiense. Nem à festa, de resto excelente, que encerrou a última Bienal do Livro do Rio, meses atrás, elas deixaram de comparecer. Algumas eram merecidamente célebres, dignas da estima e admiração a que fazem jus os expoentes de qualquer profissão. Outras encarnavam à perfeição aquilo que levou Emily Dickinson a definir a celebridade como a “punição do mérito e o castigo do talento”. Como de hábito, as segundas superavam as primeiras por larga margem.

Tive o infortúnio de adentrar o palacete do Parque Lage exatamente na hora em que ali chegava uma dupla de atores globais. Chegava é modo de dizer. Assim como os baianos não nascem, estréiam, os atores de televisão não chegam, irrompem – e desfilam. À minha frente, um prestigiado mas recatado escritor – no máximo, portanto, uma “cerebridade” – passou anonimamente pelas câmeras de TV, fotógrafos e repórteres amontoados à entrada do palacete. Embora estivesse num rega-bofe que parecia e merecia ser mais dele que de um ator apenas vistoso e uma atriz somente bonita, não fora reconhecido pelos gafanhotos da mídia, totalmente absortos – absortos, não, mesmerizados – pelas duas celebridades televisivas. Mesmerizados e apavorados com a perspectiva de um pito ou coisa pior – quem sabe, até, uma demissão – caso o veículo concorrente conseguisse mais e melhores flagrantes e declarações dos famosos presentes.

Não tenha dúvida: a mídia é a maior responsável pela patética e jeca vassalagem a celebridades que, a partir da década de 90, virou um flagelo mundial. O jeca é uma cortesia de Paulo Francis, que sentia furibundo desprezo pela fama imerecida, por celebridades forjadas pela mídia, criaturas que-são-famosas-porque-são-famosas, que nada fizeram de meritório para o destaque que a imprensa lhes dá. Ou então fazem coisas que a imprensa, por uma questão de decoro, deveria ocultar de seus leitores.

(Se você pensou em Narcisa Tamborindeguy e quejandos, meus parabéns.)

“Sabe por que os editores de jornais e revistas dão tanta luz a essa gentalha?”, comentou comigo Paulo Francis, pouco antes de morrer. “Porque todos eles, com raras exceções, são jecas e deslumbrados, que ainda ontem só andavam de ônibus, vestiam terno da Ducal, achavam o fino tomar vinho rosé, e comeram o seu primeiro patê aos 25 anos”. Evidente que me lembrei do Francis ao chegar à festa da Bienal do Livro.

“Só topei vir a esta festa porque achava que, ao menos aqui, encontraria apenas gente que escreve e gosta de ler livro e não aqueles exibidos de sempre”, resmunguei ao ouvido de minha mulher, partindo do pressuposto de que a dupla de atores sob a mira dos flashes jamais abrira um livro na vida – pura aleivosia, pois é sabido que ambos não só abriram mais de um livro na vida como coloriram todos eles.

De qualquer modo, ali, definitivamente, não era a praia deles. Nem de outras figurinhas globais, que passaram a noite assediadas por repórteres e fotógrafos da Caras e demais bíblias do voyeurismo mundano, que tampouco deveriam estar ali. Seria injusto chamá-los de intrusos, já que, afinal de contas, haviam sido convidados, não eram penetras. Mas por que convidá-los? Por que submeter nossos poetas e escritores ao constrangimento de se verem ofuscados por convivas sem qualquer lastro literário? Tudo bem que escritores, poetas e críticos literários fossem preteridos e esnobados na entrega do Prêmio Sharp ou no aniversário da Vera Fischer na boate LeBoy, mas numa festa dedicada ao livro, convenhamos, é sacanagem. Ainda mais no Parque Laje, locus classicus não só de Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade mas também, por tabela, de Mário de Andrade.

Embora tudo neste país pareça girar em torno da televisão, que peças teatrais – e até filmes de ousada feitura, como Lavoura Arcaica – só consigam financiamento com um ou mais atores de TV no elenco, tinha para mim que a indústria editorial, pelo menos ela, estivesse isenta dessa fatalidade. Com base em quê? Com base na certeza de que ler e escrever exigem um tipo de atenção e ativam uma parte do cérebro que não são o forte de quem dedica a maior parte do seu lazer ao consumo de imagens televisivas. Por ser a televisão, em suma, a janela para o mundo dos iletrados e semiletrados. Agora, ando cheio de dúvidas. Será que também para o livro não há salvação fora do vídeo? Ou será que estamos sendo apenas tapeados por editores, jornalistas e promoters chegados a uma tietagem e empenhados na transformação da literatura em show business?

Claro que não creio na hipótese de uma tentativa de evangelização subliminar de atores e atrizes, articulada por promoters. Não consigo imaginar um garotão sarado do elenco de Malhação passando numa livraria depois da ginástica para comprar o livro de ensaios de um autor que conhecera (e achara “um cara muito legal”) na festa do Parque Lage. E se isso acaso acontecesse, duvido que o livro fosse lido até o fim. Como até hoje duvido que Marilyn Monroe tenha de fato lido e apreciado Ulisses, de James Joyce, como nos quis fazer crer uma foto de publicidade da Fox, distribuída à imprensa em meados dos anos 50 [imagem acima]. Joyce, aliás, não fazia a menor falta na vida e na carreira de Marilyn, deusa de outra galáxia, e, a se acreditar nos que a conheceram, muito mais inteligente e bem informada do que 90% das atrizes globais. Seu cérebro, diga-se, era mais pesado que os de Walt Whitman e Einstein.

Apesar dos pesares, alguma vantagem nossos autores teriam se alçados à categoria de celebridades, se inseridos, com todas as benesses, na “sociedade do espetáculo”. Poderiam, por exemplo, ser contratados para estrelar comerciais e animar bailes de debutantes, os dois mais corriqueiros e rendosos biscates dos astros televisivos e esportivos. E ainda que lhes oferecessem bem menos do que atores e atletas costumam embolsar como garotos-propaganda e mestres-de-cerimônias, já estariam no lucro, pois só de direitos autorais nem meia dúzia de escritores brasileiros, se tanto, consegue viver. Tamanho delírio, contudo, não tem a menor chance de materializar-se num país como o nosso, onde a palavra escrita continua sendo uma mercadoria desvalorizada, justamente porque o hábito da leitura não faz parte da cesta básica de interesses daquela fatia da população com dinheiro no bolso para gastar em livrarias. Esses só lêem os best-sellers computados pela Veja, e olhe lá.

Até algum tempo atrás, uma resenha elogiosa na Veja era um passaporte para a consagração. Talvez ainda seja, mas já ouvi mais de um editor dizer que troca uma resenha na Veja por uma entrevista no programa do Jô Soares. Credita-se ao Jô Onze e Meia o mesmo peso que nos EUA tem o talk show de Oprah Winfrey, comprovada fazedora de best-sellers. Não duvido dessa balança, mas, dependendo do livro que se está lançando e caitituando, uma ida ao Jô ou à Oprah pode ser tão lucrativa quanto abrir uma filial do Fauchon no interior do Piauí. Nem recomendados pela Xuxa, James Joyce e Raduan Nassar passariam a ser mais procurados nas livrarias. E se o fossem, não seriam lidos além das primeiras linhas. Só obras de fácil digestão ou totalmente ignoradas pela mídia impressa precisam de programas de televisão para aumentar suas vendas.

Dá para levar a sério uma pessoa que tenha “descoberto” Carlos Heitor Cony assistindo ao programa da Ana Maria Braga ou lendo a Caras? Se bem conheço Cony, e o conheço há exatos 40 anos, nem ele levaria. Tampouco dou crédito à tese de que ler, como coçar, é só começar. Pode ser assim nos países nórdicos. É fato que todo mundo, sem exceção, se inicia na leitura de ficção através de autores bem acessíveis – nem Carpeaux começou a se interessar por literatura folheando Thomas Mann –, evoluindo à medida que seu repertório cognitivo consegue se ampliar e sofisticar. Se não consegue, babau. Há quem acredite que aqueles que hoje devoram Sidney Sheldon, Rosemunde Pilcher & cia., amanhã cairão de boca em Rubem Fonseca, Flaubert e até Joyce. Upgrade assim, em adulto, é coisa rara – tão rara que eu nunca vi. A maior parte da humanidade começa lendo chorumelas, toma gosto pelo negócio – e morre lendo chorumelas.

Por isso, mas não só por isso, se bem que muito por isso, a humanidade, em vez de caminhar, rasteja.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na edição de janeiro de 2002 da revista Bravo!.

Sérgio Augusto
Rio de Janeiro, 27/5/2002

 

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