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Segunda-feira, 6/9/2004 Caderno de Letras Sérgio Augusto Depois da bola de futebol, do time de botão e dos gibis, o objeto mais precioso da minha infância e adolescência era o caderno de letras. Letras de música. Ele era o nosso incunábulo musical, a nossa bíblia mnemônica. Nele registrávamos a nossa poesia básica, a nossa lírica do dia-a-dia: enfim os versos que nos davam mais prazer e tristeza e melhor nos evocavam momentos, lugares e pessoas. Por mais que admirássemos Drummond e Pessoa, traziam outras assinaturas os nossos versos de cabeceira: Noel Rosa, Lamartine Babo, Orestes Barbosa, Braguinha, Ary Barroso, Herivelto Martins, Dolores Duran, Newton Mendonça, Vinicius. Para não falar de bardos hoje pouco lembrados, como Denis Brian, e obscuros, como Elano de Paula, letrista de uma obra-prima composta por Chocolate e celebrizada por Elizeth Cardoso, Canção de Amor. Aquela que começa assim: "Saudade, torrente de paixão/ emoção diferente/ que aniquila a vida da gente/ uma dor que eu não sei de onde vem..." Que ninguém duvide: a melhor sabedoria do Brasil está nas letras de suas melhores canções. Que ninguém se iluda: por mais que existam músicas ligadas a causas e mobilizações políticas (Guantanamera, Caminhando, We Shall Overcome) e outras tantas identificadas com determinado período histórico (Brother, Can You Spare a Dime? traz de imediato à lembrança a grande Depressão americana nos anos 30), a maioria das canções se destina, mesmo, a dramatizar dores, queixumes, anseios e alegrias que dizem mais respeito ao coração e aos hormônios das pessoas. Quem entendeu isso, deu-se muito bem. Pena que não tenha guardado um só exemplar dos meus paleolíticos "song books", precariamente confeccionados com uma caneta Parker 51 e trazendo impressa na contracapa a nossa canção patriótica número um: o Hino Nacional. Ajudado pela memória, poderia reconstituir páginas e mais páginas de alguns deles; várias inesquecíveis pela trabalheira que me deu a obtenção de certas letras em inglês, gravadas por intérpretes sem a esmerada dicção de Frank Sinatra e Nat King Cole. Ainda me lembro da primeira letra copiada (de uma revista), pois ela também foi a primeira canção norte-americana que aprendi a cantar foneticamente. Estamos no final dos anos 40 e O Trevo de Quatro Folhas ainda não ganhou a versão brasileira que João Gilberto tornaria famosa muitos anos depois. O trevo que girava na minha vitrola era um 78rpm com Russ Morgan. Que me desculpem os puristas, mas não aprendi a amar a música popular norte-americana através de seus letristas de proa. Creditem a falha à tenra idade e à temporária ignorância do idioma de Cole Porter, Lorenz Hart, Johnny Mercer, Irving Berlin, Dorothy Fields, E.Y. Harburg, Ira Gershwin e Howard Dietz. Lester Lee por certo não jogava nesse time, mas eram dele os versos do meu primeiro coup de foudre musical Blue Gardenia , ao qual, diga-se, permaneço fiel até hoje. Mais do que qualquer outra canção Blue Gardenia opera misteriosas conexões químicas em meu cérebro e minha alma, despertando uma melancólica sensação de bem-estar que eu não sei de onde vem. Não consigo ligá-la a nenhum instante específico de minha infância; o que me leva a supor que o seu encanto deriva em grande parte de sua enigmática presença em minha memória afetiva. Outro fator que contribuiu para a sua consolidação como favorita de milhares de pessoas foi ter-se popularizado através de um só interprete, Nat King Cole, não contando, claro, a versão gravada por Cauby Peixoto, ainda na década de 50, salvo engano, anterior à de Dinah Washington. Há tempos uma pesquisa financiada por uma agência nova-iorquina de publicidade revelou que as três canções favoritas dos norte-americanos não haviam sido compostas por nenhum dos três mais queridos compositores do país, Cole Porter, Irving Berlin e os irmãos Gershwin. A primeira era Stardust (de Hoagy Carmichael e Mitchell Parrish); a segunda, Laura (de David Raksin & Johnny Mercer); e a terceira, Some Enchanted Evening (de Richard Rodgers & Oscar Hammerstein 2Ί). Parrish era uma máquina de produzir baladas miúdas, que precisou da música maiúscula de Carmichael para tocar no nervo de milhões de sensibilidades. Hammerstein era um letrista quadradão, ao lado de quem Rodgers, antigo parceiro de Lorenz Hart, baixou de nível. Dos três letristas premiados, apenas Mercer pertencia ao Olimpo. Mercer, que morreu em 1976, aos 66 anos, talvez tenha sido o mais completo letrista popular da América. Digo isso pensando não apenas em sua obra de primeira linha (Blues in the Night, That Old Black Magic, Dream, I Remember You, One For My Baby, Early Autumn, Midnight Sun, Too Marvelous For Words, Come Rain or Come Shine), mas também nos parceiros que teve, em seus sucessos arrasadores, como Moonriver e Days of Wine and Roses, em suas contribuições ao repertório jazzístico (Tangerine, Day In, Day Out) e até mesmo ao rock, que dele reaproveitou You Must Have Been a Beautiful Baby e Fools Rush In (regravado por Brenda Lee). Sem contar a balada Bernardine, que ele compôs especialmente para um dos primeiros ídolos do rock, Pat Boone. Se bem que menos rebuscado que Porter, Mercer que adorava enfatizar certas palavras, como "down, down, down", "fight, fight, fight" e "cool, cool, cool" também se deleitava com rimas audaciosas ("Tijuana" com "honor", "Frasier" com "euthanasia", "bumble-bee" com "jubilee", "teepee" com "RSVP"); inventou expressões curiosas, como "jeepers creepers" e "huckleberry friend"; arrumou vaga para outras, aparentemente sem acesso a uma canção, como "aurora borealis", encaixada na letra de Midnight Sun, ela própria um prodígio de imagens e comparações insólitas (a certa altura, uma nuvem lembra um palácio de alabastro). Não bastasse tudo isso, Mercer foi o primeiro grande letrista norte-americano a entrar nos meus cadernos. Com Something's Gotta Give. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo, a 13 de outubro de 1993. Sérgio Augusto |
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