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Segunda-feira, 1/11/2004
Aflições de um jovem escritor
Miguel do Rosário

Acho que a maioria dos jovens escritores brasileiros da atualidade sofre da "síndrome de Mallarmé", ou seja, possui uma ideologia estética baseada somente na "arte pela arte" e, por isso, vemos seus trabalhos tomando a direção ou do populismo folhetinesco ou de um vanguardismo vazio e sem apelo.

Não que eu tenha a fórmula da verdade, ou que seja melhor que ninguém. Muito pelo contrário, não apenas estou tão enrolado em dúvidas como a maioria destes infelizes seres conhecidos sob o rótulo de "jovens escritores", como, à diferença de muitos, ainda não consegui encontrar um estilo consistente e original.

Entretanto, me repugna essa mania de se posar de vítima da incompreensão das editoras ou culpar a falta de público. Certo, esses problemas existem, e parte importante do que se chama de "crise" da literatura brasileira certamente decorre destes fatores. Mas essa atitude derrotista e tristonha não leva a lugar nenhum.

Há outra coisa que parece preocupar os jovens escritores, que é justamente a proliferação exagerada de... escritores. Na medida em que não se vê o mercado se expandir, o surgimento desenfreado de novos autores parece aumentar ainda mais a angústia daqueles estão dispostos a sacrificar um bom futuro como advogado, médico ou jornalista para se dedicarem à literatura. Sabem que concorrência é concorrência e quanto mais gente chega de van, trazendo farofa, galinha e vitrolinha, mais vulgarizado e anônimo vai ficando esse outrora charmoso epíteto: escritor.

Outro fator que desespera o jovem escritor é a percepção de que tudo é uma questão de tempo. À sua frente, milhares de livros esperam para serem lidos. Outras dezenas, para serem escritos. Mas o relógio não perdoa e os ponteiros rodam, rodam, rodam. E a vida passa, 20, 30 anos. A grana aperta. Os pais pressionam: "Ô garoto, pense bem! Onde vai arrumar dinheiro?".

E aí o escritor vai arrumar emprego, e trabalha, trabalha, trabalha, até que um dia vê no jornal uma reportagem sobre um novo autor. É roído pela inveja, pela vaidade, pragueja contra o fato de não ser ele o contemplado. "Por que não eu?", grita em silêncio, rilhando os dentes. E aí começa a negligenciar o trabalho e a dedicar mais tempo a ler e escrever. Como não pode abandonar tudo em prol da arte, vai vivendo pela metade, angustiado duplamente. Quando está escrevendo, angustia-se por saber que está perdendo a oportunidade de ganhar um dinheiro que sabe necessário para o chope, mulheres, aluguel, comida enfim. Isso para não falar naqueles coitados que resolvem (ou melhor, dão o mole de) ter filhos. Esses são o caso mais grave.

Quando está trabalhando, sofre porque vê seu talento, seu gênio, sua energia, sendo sangrados no altar de um capitalismo barroco de terceiro mundo.

Acossados pelo desespero, começam a enviar texto para tudo que é site de literatura, ansiosos por verem seu nome publicado em algum lugar. Outros se especializam em mandar texto para editoras e concursos. Não se preocupam mais tanto com a qualidade. O negócio é ser publicado. Só isso acalmará a serpente de vaidade que se agita em seu espírito inquieto. Ah, o prazer de ler, reler e ler de novo, o seu nome num jornal, numa revista e, sobretudo, num livro.

Diante de tal estado de coisas, é natural que o jovem escritor acabe aderindo ao "panelismo", ou seja, mergulhe de cabeça numa estratégia de puxa-saco de algum grupo de jovens escritores que possuem algum tipo de acesso ao mercado e às editoras. Ao mesmo tempo, esse grupo acaba por acreditar nos elogios que escutam e passam a dar muito mais valor a isso, a seus amigos, do que ao público. Aí estes escritores, impulsionados por seu exército de amigos, que compram seus livros, visitam seus sites e enchem as caixas de comentários com toneladas de abrobrinhas, são procurados pelas editorias de literatura de jornais e revistas.

Ah, é claro, existem ainda os "gurus", que são os escritores da velha guarda, consagrados, que dedicam breves referências aos novos escritores, muitas vezes sem ter lido com atenção os autores citados, como uma forma de mostrar sua complacência com a nova geração. Inconscientemente, pensam que quanto pior for a nova geração, mais destaque terão suas próprias obras.

E o mercado, malandramente, sempre tem meia dúzia de "jovens escritores" para mostrar ao público, de preferência uns boboquinhas despolitizados, que disfarçam sua alienação com uma boa dose de cinismo, e escrevem textos tão desagradáveis que ninguém tem estômago para ler e, portanto, ninguém tem coragem de criticar com método, à exceção de críticos de pijama, barba mal feita, criança chorando no quarto e sala cujo aluguel está atrasado, os quais são tratados com cruel escárnio e mesmo violência por estes novos queridinhos da mídia, que, por sua vez, se acham grandes marginais pelo fato de não ganharem tanto dinheiro como gostariam.

E a velha tática vai nos empurrando os mesmos nomes, mesmo que ninguém, absolutamente ninguém, tenha o mínimo prazer de ler seus livros. Que importa o prazer? Importa sim o glamour de ser mais um iniciado que possui um bom livro novo de R$ 40 na estante e pertencer à diminuta casta dos que conhecem tal e qual jovem escritor contemporâneo.

Seguindo a minha ideologia pessoal de que a crítica seguida de sugestão é um gesto muito mais nobre do que o simples resmungo, vai a minha idéia: aumentar o número de concursos, sempre com a participação de um júri popular e um júri especializado. Concursos locais, estaduais, nacionais. Muitos concursos, com bolsas de um, dois, três anos de prêmio. Enquanto não dermos chance aos escritores de se profissionalizarem, estaremos sempre desperdiçando talentos, sacrificando-os em funções onde não contribuem tanto para o desenvolvimento nacional.

Há um desequilíbrio muito grande, mesmo levando-se em conta a diferença de custos, entre o tratamento orçamentário que o poder público dá ao cinema, por exemplo, e à literatura, relegada ao pior dos mundos.

Está certo, talvez a maioria destes jovens escritores sejam apenas rapazes mimados mais interessados em ver seus nomes estampados em páginas de jornais, sob o pomposo rótulo de "escritor", do que, efetivamente, preocupados em inventar histórias interessantes que divirtam o povo. Mas, enfim, é uma galera preparada, que poderia ser de grande valia à cultura nacional se houvesse a possibilidade de trabalharem de acordo com sua vocação.

Por outro lado, já posso ver qualquer iniciativa do governo neste sentido sendo bombardeada de "stalinismo" ou "dirigismo cultural" pela maior parte destes escritores, sobretudo aqueles que já romperam a grossa casca do anonimato, e que automaticamente deixam de se interessar pela "gentinha" que ainda labuta por um lugar ao sol. A maioria veria nisso mais um ataque à classe média, pois mesmo sendo sistematicamente irônicos e críticos em relação aos preconceitos de classe média, não deixarão nunca de defender os poucos e sofridos privilégios que conseguiram arrancar da boca faminta do povão...

Enfim, como convêm a um artigo sobre literatura, trouxe poucas respostas e muitos questionamentos, falei mal de todo mundo, e ainda tirei uma onda de modesto, que é uma forma sutil de se auto-afirmar como gênio. Na verdade, nós escritores somos todos megalômanos, brigões, invejosos, egoístas, depressivos, individualistas, interesseiros, pervertidos, problemáticos e com uma forte tendência, poucas vezes contida, para o alcoolismo.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Novae, dirigida por Manoel Fernandes, que igualmente autorizou a reprodução.

Miguel do Rosário
Rio de Janeiro, 1/11/2004

 

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