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Segunda-feira, 1/5/2006
Milton Hatoum
Julio Daio Borges


Milton Hatoum em foto de Lucila Wroblewski

Milton Hatoum nasceu em 1952, em Manaus. Morou em Brasília, na Espanha, na França e nos Estados Unidos. Reside desde 1999 em São Paulo, cidade onde se graduou arquiteto (FAU-USP) na década de 1970. É autor, pela Companhia das Letras, de Relato de um certo Oriente (1989), Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005). Ainda dá aulas de literatura, é tradutor esporádico e colunista da EntreLivros e da Terra Magazine.

A idéia da entrevista surgiu a partir de um curso sobre o gênero romance que Milton Hatoum ministrou em 2005 na Casa do Saber. O objetivo da entrevista era ampliar a compreensão da obra do escritor mas acabou saindo melhor do que a encomenda, foi publicada no
Suplemento Literário de Minas Gerais e abre, agora, esta nova seção no Digestivo Cultural.

Na entrevista, Milton Hatoum fala de seus três romances, com destaque para o último. Revisita suas principais influências e dá conselhos aos jovens escritores. Discute, ainda, o papel do artista em nossa sociedade e esmiuça um pouco o ofício de escritor. Sobre a mesma entrevista, Milton Hatoum depois declarou: “Foi uma das melhores conversas sobre literatura”. – JDB


1. Milton, o que vem depois da obra-prima? Agora entendo por que você parecia tão exaurido, quando da época do lançamento, no curso na Casa do Saber... Depois de Cinzas do Norte, você sente que realizou uma obra – ao contrário de Mundo, seu protagonista?

Cinzas do Norte não é uma obra-prima, e digo isso sem falsa modéstia. Mas com esses três romances, acho que consegui realizar alguma coisa... Tentei construir um universo ficcional... O mais importante é dar forma a esse universo fechado e coeso, mas vivenciado com intensidade e paixão. Por isso estava exaurido. Foram mais de quatro anos de trabalho... E escrever significa reescrever, filtrar toda uma experiência, cujo limite é a morte. O fim de um romance é uma morte simbólica porque o narrador esgota toda sua experiência sobre um assunto ou conflito ou história de vida. Não queria o destino de Mundo para mim. Aliás, de nenhum de meus personagens... a não ser dos narradores, que sobreviveram para escrever um livro. Só percebi isso quando estava terminando o Cinzas do Norte. Pensei: é o terceiro romance que escrevo e é o terceiro narrador que sobrevive para contar uma história. Um pouco como Sherazade, que inventa e fabula para não ser decapitada. Nós vivemos a síndrome de Sherazade.

2. Ainda na Casa do Saber, você falava que queria discutir, através desse romance, o papel do artista na nossa sociedade. Conforme previsto, a mídia não trouxe essa discussão à baila... Enfim: você não acabou provando, até pela sua trajetória desde 1989, que se pode ainda construir uma obra, mesmo em tempos tão difíceis para o artista?

É verdade, não se falou muito sobre isso, embora seja um dos temas centrais do romance. O personagem Mundo se depara com um ambiente adverso em Manaus, onde o pai, a província e o regime militar o oprimem. Ele é um “estranho” em sua própria terra. Mas anos depois, quando mora em Berlim e Londres, ele se torna um auto-exilado, com pouca interlocução, e cerceado pela imagem sufocante do pai. Quer dizer, é um estrangeiro, sem eira nem beira, pois não desfruta da herança de Jano. De certo modo, ele faz o percurso que alguns da minha geração fizeram: de Manaus (ou qualquer outra cidade periférica), para o Rio ou São Paulo e depois para a Europa. Eu me inspirei em romances cujos personagens são intelectuais ou artistas: Retrato do artista quando jovem, Pais e filhos... São personagens desgarrados, que instauram uma fratura na família e na sociedade. Essas questões vêm de muito longe, o exílio, o lugar difícil e improvável do artista num mundo movido pelo consumo e o lucro. Nos dias de hoje a literatura já não tem o interesse que tinha na época de Joyce ou mesmo na década de 1950, mas acho que ainda há e sempre haverá bons leitores em todo o mundo. Esses leitores existem e justificam a literatura.

3. No seu caso, mais uma vez, você acha que encontrou o equilíbrio entre Mundo, o artista bruto e “impoluto”, e Arana, o artista consagrado e “vendido”? Esse dualismo ainda persiste? Você sofreu pressões, por exemplo, como escritor, para pender para um lado ou para o outro? Se, sim, como superou isso?

Mundo e Arana são pesos nas extremidades de uma mesma gangorra. A pressão social e a ambição se refletem na vida de cada um desses personagens. Acho que esse dualismo ou polarização é nocivo para ambos. No caso de Arana, por motivos éticos e estéticos. Ele é o caso típico de intelectual ou artista que promete revolucionar a arte e acaba cooptado, beijando os anéis do poder. Começa sua carreira como artista de vanguarda e no fim ele se revela... No caso de Mundo, sua autocrítica é tão feroz, tão radical, que o imobiliza. Penso que o equilíbrio a que você se refere não significa capitulação nem dissipação total, e sim a busca de uma linguagem que traduza a densidade de uma experiência, sem abrir mão de certos princípios. Não sofri nenhuma pressão editorial, pois demorei dez anos para publicar o Dois irmãos. A maior pressão veio de dentro de mim. O primeiro romance foi bem recebido pela crítica daqui e do exterior, e isso me inibiu. A auto-exigência aumentou e eu não gostei de nada do que escrevi depois do Relato. Mas há também o narcisismo... O narcisismo extremado é nocivo e deve ser evitado. Mas isso só vem com a maturidade. O tempo é fundamental para quem lê e escreve. A passagem do tempo embaça a figura do autor e faz com que a crítica se concentre em sua obra, que é o que interessa. Por isso sou meio neurótico com a autobiografia, pois minha vida não devia ter nenhum interesse para quem lê meus livros.

4. Outras dicotomias se colocam com muita força nesse livro e em sua obra como um todo (principalmente as de família...). Mas, a meu ver, nunca foram tão bem resolvidas, ou “discutidas”, como em Cinzas do Norte. Você, tradicionalmente, não dá “solução” e nenhum personagem se salva no final. Pessoalmente, acredita numa visão trágica da vida – como os gregos, como Nietzsche?

Sim, e também como Conrad, Faulkner e Dostoiévski. Os poucos personagens que se salvam são os narradores. Se não sobrevivessem, não haveria narrativa... É o que acontece com o narrador do conto de Poe: "A queda da casa de Usher". Ele tem de cair fora antes do desmoronamento da casa. Trato a família como um ritual autofágico, em que todos se devoram para no fim sobrar apenas a palavra escrita, a memória inventada da tribo.

5. No caso de Dois irmãos (2000), você contou que Raduan Nassar – que não mais escreve, mas que ainda assim lê – lhe aconselhou, entre outras pessoas, a não pender tanto para o lado de Yaqub, o irmão aparentemente “bom” da história, que você igualmente condena no final. Em Cinzas do Norte, foi premeditado condenar também a Lavo, aparentemente um narrador “impessoal”, através de Tio Ran?

Foi intencional... Bom, quando você chega ao terceiro livro, deve ter assimilado alguma coisa, inclusive as falhas dos anteriores. A verdade é que os três manuscritos passaram por leituras cerradas dos editores e de alguns poucos amigos. Por exemplo, a narrativa de Ranulfo (tio Ran) não existia até a penúltima versão do manuscrito. Nessa versão, o texto de tio Ran era apenas um fragmento que aparecia no fim do livro, com o título "Obituário de Mundo". Na releitura dessa versão, senti falta de uma pré-história da vida de Mundo, de sua mãe e de outros personagens que moravam no Morro da Catita, antes do casamento de Alícia com Jano. Então passei uns oito meses escrevendo essa narrativa, até encontrar o tom da voz desse outro narrador, que conta outra história, diferente da história narrada por Lavo. Quis acentuar a aparente “impessoalidade” de Lavo, embora este sinta atração e medo do pai do amigo. Mas a perplexidade de Lavo é a vida do amigo, e é isso que ele tenta entender. Porque a história de uma amizade é a história de uma compreensão e também das lacunas dessa amizade, daquilo que é inefável ou não pode ser dito... A amizade é uma relação de afeto e cumplicidade, mas com zonas de sombra em que aparecem a dúvida, a perplexidade e o ciúme. Ninguém entende o outro em sua plenitude, nem o outro nem o passado, e eu quis explorar isso nos três livros. O romance é um esforço dirigido a essa compreensão, que nunca se realiza plenamente.

6. Embora o protagonista seja Mundo, e o livro se encerre com ele coroando uma trajetória de muita frustração, todas as personagens terminam também sem realizar suas potencialidades: Jano se frustra com o filho Mundo; Tio Ran não se junta ao amor de toda a vida, Alícia... Talvez só Lavo, com testamenteiro, mesmo que condenado, tenha realizado seu intuito – contar a história toda. Entre a ópera bufa, de Machado, e o som & a fúria, de Shakespeare e Faulkner, você fica com a segunda opção?

Sim, com a segunda, embora não haja nenhum sopro de esperança na obra de Machado, cujo pessimismo era radical. Faulkner é um dos meus escritores prediletos, e toda a crítica de sua obra à sociedade americana é muito atual, sempre sob o signo do trágico, da violência e, às vezes, do horror. O patriotismo exacerbado, o racismo, a apologia ao consumismo, o fanatismo religioso, o puritanismo e o moralismo, tudo isso é elaborado na ficção de Faulkner. Você entende a América de Bush lendo Luz em agosto ou contos como "Setembro seco" e "Dois soldados".

7. Um dos grandes méritos de Cinzas do Norte, e da sua obra, é consolidar uma linguagem, uma visão de mundo, daquele universo brasileiro em torno da Amazônia, misturado com a colonização libanesa e a presença indígena. Ao mesmo tempo, Cinzas do Norte é genuinamente universal, pelo que contém de drama humano. Como foi chegar a essa síntese desde Relato de um certo Oriente (1989)?

Antes de escrever o Relato, eu já estava vacinado contra a literatura regionalista. Não ia cair na armadilha de representar “os valores” e a cor local de uma região que, por si só, já emite traços fortes de exotismo. Percebi que podia abordar questões a partir da minha própria experiência e das leituras. E fiz isso sem censura, sem condescendência, usando recursos técnicos que aprendi com algumas obras. Tive a sorte de nascer e morar numa cidade portuária, onde não faltam novidades nem aventuras ou casos escabrosos. Além disso, os membros da minha tribo manauara, amigos, parentes e vizinhos não eram figuras de uma natureza-morta. Histórias que vinham de todos os lados, de minha casa, da vizinhança, do porto, dos bordéis-balneários e até da casa do arcebispo. Quando penso na minha infância e juventude, percebo que foi a época em que vivi com mais intensidade, dia e noite. Havia tudo, inúmeras peripécias e também a política, pois meus tios participavam da vida política, que era mais um assunto doméstico. Aos 15 anos saí sozinho e fui morar em Brasília, isso em 1968. E depois morei em São Paulo e fora do Brasil, o que foi importante para minha formação. Chegou um momento em que fiz uma pausa e comecei a escrever sobre esse passado. Mas não queria escrever qualquer coisa, me debrucei no trabalho, na forma do texto, na construção dos personagens.

8. Machado de Assis nasceu, morreu e falou do Rio de Janeiro do século XIX; Guimarães Rosa foi médico e diplomata, morou fora, mas falou sempre da sua Minas Gerais; já Euclides da Cunha saiu do Rio e de São Paulo para falar de Canudos. Você, como Mundo, passou um tempo considerável longe da sua terra natal, o Norte do Brasil, acha que é sua sina exorcizar os demônios da época em que viveu lá? Vê, no futuro, a possibilidade de um romance urbano (sei que não gosta da expressão)?

A época em que vivi em Manaus somam trinta anos. Não gosto muito da expressão porque é genérica e tenta classificar ou rotular um tipo de narrativa. Romance urbano é quase uma tautologia. O romance já é, em sua origem, um gênero que nasceu na cidade e está relacionado com a imprensa. O espaço do Rio de Janeiro de Machado é menos importante que o conflito dos personagens e a ordem social e simbólica que representam. Alguns dos melhores contos de Machado, como “O Espelho”, ocorrem fora do Rio, embora tenham uma relação com a sede do Império ou com a capital da República. Ninguém mais “urbano” e paulistano do que Mário de Andrade, mas sua obra-prima é Macunaíma, que mistura tudo: mitos, paisagens, lugares, etnias, a floresta e a cidade. E o que dizer do romance Os ratos, de Dyonélio Machado? O drama de Naziazeno não reside na violência de Porto Alegre, uma cidade pacata e provinciana na época da narrativa, e sim no ritmo tenso de uma vida medíocre e dilacerada pela pobreza, desespero e angústia. O norte dos meus romances é uma cidade, Manaus, que mantém vínculos fortes com o interior do Amazonas mas também com São Paulo (no Dois irmãos), e com o Rio e a Europa, no Cinzas do Norte. Manaus foi construída e consolidada a partir dessas relações sociais, econômicas e culturais. Na literatura é importante estabelecer vínculos de afinidade e oposição. Agora mesmo acaba de sair um conto que escrevi (“Bárbara no inverno”, na antologia Aquela canção/Publifolha) ambientado em Paris e no Rio. E é provável que São Paulo apareça com mais força em algum texto futuro. É só uma questão de tempo. Por enquanto, ainda tem seiva na infância manauara.

9. Você seguiu os mestres, daqui e de fora, mas, ao mesmo tempo, inaugurou uma linhagem própria. Acredita que, num futuro, alguém possa continuar a sua obra, em relação a temas e mesmo no que diz respeito à ambientação – ou imagina que cada “literatura” está condenada a ser autônoma?

Penso que nenhuma literatura é totalmente autônoma. Cada escritor procura sua voz, mas essa voz, esse estilo, que é algo pessoal, deve alguma coisa a outras vozes. Uma frase de Mundo resume o quero dizer: Nada é puro, original, autêntico. Quando lemos Borges ou Flaubert, estamos lendo uma biblioteca. Faulkner gostava de Conrad, que gostava de Henry James, que gostava de Flaubert... E todos leram Cervantes... Talvez seja pretensioso imaginar que alguém possa continuar meu trabalho. Mas escrever é inscrever-se numa tradição, que é do Oriente e do Ocidente. Por exemplo, Proust, Stendhal e Machado de Assis foram fascinados pelo Livro das 1001 Noites...

10. Sei que você não parece muito entusiasmado com o tempo presente, e não só no que diz respeito às artes... De qualquer maneira, o que diria a um autor iniciante? Existem conselhos a serem dados? Alguma coisa que você mudaria na sua própria trajetória? Ou o caminho do escritor é sempre solitário, árduo e imponderável – como o destino de Mundo?

Quando eu era jovem, pensava que só devia escrever e publicar depois de ter lido uma biblioteca formada por grandes livros. Eu me obriguei a ler livros que hoje não leria mais, textos que não me deram uma gota de prazer no ato da leitura. Foi um erro, mas não me arrependo. O que eu posso dizer a um autor iniciante? Em primeiro lugar, a vida é mais complexa que a literatura, mas uma literatura consistente parte exatamente da assimilação da complexidade da vida, que inclui a leitura interessada de bons livros. Diria também que a literatura exige paciência e muito trabalho, e que a imaginação é filha desses atributos. Por fim, é preciso ter cuidado para não cair na tentação da vaidade extrema nem do experimentalismo vazio e superficial. A novidade de uma obra vem da configuração do texto pelo narrador, do vínculo necessário e profundo da linguagem com o assunto, e não da moda literária ou de um compromisso neurótico de se escrever algo absolutamente original. Do ponto de vista da linguagem, o nouveau roman francês não tem muita novidade, e o próprio Barthes reconheceu isso. A busca insana de uma “originalidade genial” pode ser algo inibidor e desastroso para um jovem. Acredito que todo ser humano tem uma experiência de vida, aquilo que Giorgio Agamben chama de “infância do ser humano”. Ele diz algo assim: a linguagem aparece como o lugar em que a experiência deve tornar-se verdade. E a literatura é a transcendência pela linguagem de uma vida empírica ou do que nomeamos realidade. Uma linguagem que transmita uma verdade interior, não mascarada nem superficial.

Nota do Editor
Texto igualmente publicado na edição de fevereiro do Suplemento Literário de Minas Gerais.

Para ir além





Julio Daio Borges
São Paulo, 1/5/2006

 

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