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Segunda-feira, 5/3/2007
Flávia Rocha
Julio Daio Borges


Flávia Rocha em foto de Fernanda Rocha

Flávia Rocha é multitalentosa. Começou sua carreira no jornalismo, formando-se pela Fundação Cásper Líbero em 1997, mas estreando em papel, já no primeiro ano da faculdade (1994), aos 20, na Carta Editorial, sob as bençãos de Mino Carta e Wagner Carelli, e ao lado do também estreante, igualmente na casa dos 20, Michel Laub. Lá, Flávia passou pelas revistas Carta Capital e Casa Vogue. Com Carelli, em 1996, participou da fundação da revista República e, posteriormente, da Bravo!, onde Laub se tornou inicialmente editor de livros — ambos empreendimentos de Luiz Felipe D'Avila, que agitou o mercado no final dos anos 90 com sua destemida Editora D'Avila.

A partir de 2001, Flávia Rocha promove uma virada em sua carreira, deixando o jornalismo
full time do Brasil, para ir estudar na Universidade de Columbia, mais especificamente para fazer um mestrado em "Poetry/ Writing", na área de "Fine Arts". Dessa experiência acadêmica e prática, resulta The Blue House Around Noon ou A Casa Azul ao Meio-Dia, seu primeiro livro, publicado no Brasil em 2005, em edição bilíngüe, pela Travessa dos Editores. Antes de retornar ao seu País, porém, Flávia estagia numa das melhores revistas do mundo, a The New Yorker, selecionando toda a poesia que chegava pelo e-mail, e se torna ainda editora da Rattapallax, "um journal literário", na sua própria definição, da qual participa até hoje.

Não contente com esse histórico de brilhantes realizações, Flávia Rocha e seu marido, Steven Richter, montam a Academia Internacional de Cinema (AIC), primeiro em Curitiba, depois em São Paulo, no bairro de Higienópolis. Neste ano, Flávia inaugura, além dos cursos práticos em matéria de sétima arte, um ambicioso Programa de Criação Literária — que pretende ser, na suas palavras, "um ponto de encontro entre mestres e aspirantes".

Nesta Entrevista, Flávia Rocha conta a história e define o papel da AIC: "Quando eu era estudante, sentia muita falta de um espaço criativo assim". Retrocede até o início de sua carreira, entre Cásper Líbero e Carta Editorial: "Era a vida real que [então] mais me interessava". Reconhece ter tido oportunidades raras como estreante ("passavam logo matérias importantes para quem estava começando"), mas não faz coro com aqueles que apostam na decadência do jornalismo contemporâneo: "Quero acreditar que uma hora dessas alguém começa uma revolução". Das históricas
República e Bravo!, sente saudades mas guarda uma lição: "Trabalhar em revista nova é viver perigosamente".

Da temporada em Columbia ("minha louca tentativa de fazer um curso de criação em outra língua"), aproveitou cada segundo: "Participei do que pude desse mundo editorial [norte-americano], e observei muito". Sobre a
New Yorker ("foi como andar e respirar dentro de um sonho"), não economiza em palavras: "Cada vez que eu pegava o elevador da Condé Nast na Times Square e passava pelos andares: Vanity Fair, Wired, Vogue, GQ... pela cafeteria projetada pelo Frank Ghery... e descia na mitológica The New Yorker, repetia para mim mesma: não acredito que isso esteja acontecendo". E a Rattapallax, para quem já coordenou todo tipo de evento em São Paulo? Continua "como inspiração".

Flávia Rocha avalia, ainda, que a produção poética brasileira se encontra "numa fase brilhante" e afirma: "A crise não é criativa e, sim, administrativa". Sobre os novos suportes e a internet, mais especificamente, observa, arguta: "[É] como se tudo estivesse num grande tanque, e nós tivéssemos de mergulhar para ver o que está lá em baixo". Flávia encerra constatando que é "de um otimismo irremediável" e que "certos desafios a gente só consegue encarar quando se tem ingenuidade...". — JDB


1. Flávia, antes de começar, eu devo dizer que você, para ser uma poetisa (e jornalista) "jovem" — entre tantas outras coisas —, tem um currículo riquíssimo. Em geral, aqui nas Entrevistas, a gente começa pelo "gancho", pelo final, mas, no seu caso, quero falar de tudo um pouco (então prepare-se)... Começando pelo programa de Criação Literária, que vocês estão lançando na Academia Internacional de Cinema de São Paulo, dirigida por você e seu marido, gostaria que contasse um pouco da história da AIC, das idéias por trás desse programa e que ressaltasse, ainda, como toda a sua vivência, como jornalista e autora, se insere nessa iniciativa. Em outras palavras: você tem, até onde eu vejo (e acompanho), uma carreira brilhante, mas... — sentiu falta de orientação em algum ponto do caminho? Pensa, por exemplo, que o talento, no Brasil, nem sempre tem as chances e as oportunidades que você teve? Esse programa de Criação Literária, da AIC, é também uma tentativa de devolver todo o apoio de que você desfrutou?

A AIC é também uma filosofia — a idéia de que a experiência, a prática, o fazer é a melhor forma de aprender. O aluno entra na escola com muita vontade de fazer cinema, de escrever textos, de produzir, e ali ele encontra um ambiente que o estimula, que o provoca, que o aconselha e encaminha. É um espaço organizado para que ele pense e desenvolva seus próprios trabalhos, explore linguagens. Um estudo aprofundado, num tempo nem muito longo, nem muito curto — o tempo que se leva geralmente para se saber se está ou não está no lugar certo. As matérias teóricas acompanham o aluno de maneira a auxiliá-lo, e não como o objeto principal de estudo. Quando eu era estudante, sentia falta de um espaço criativo assim — meus amigos que queriam fazer cinema e estavam cursando outra coisa na faculdade acabavam desistindo do sonho por falta de opções. No caso da literatura, é ainda pior. Quem quer escrever vai estudar letras, publicidade ou jornalismo, que apenas muito lateralmente têm alguma coisa a ver com criação literária.

Minha maior escola quando estava começando foi um estágio que se transformou em emprego na Carta Editorial, logo no primeiro ano de faculdade. O convívio com jornalistas como Mino Carta, Wagner Carelli, Bob Fernandes... O encontro com os mestres, com quem ama o que faz e sabe fazer como ninguém, é o que pode haver de melhor no início da vida profissional, quando ainda se tem tudo para aprender. A AIC é também um ponto de encontro entre mestres e aspirantes. É uma das marcas mais fortes da escola — os professores são profissionais reconhecidos e atuantes. Convidamos sempre os melhores, os mais apaixonados, e contamos com o apoio e a generosidade de um grupo maravilhoso de profissionais.

2. Voltando no tempo, eu queria falar um pouco da sua formação em jornalismo, na segunda metade da década de 90, na Cásper Líbero. É engraçado porque neste momento, no Digestivo, temos pelo menos quatro jovens jornalistas da Cásper como Colunistas (por ordem alfabética): o Guilherme, a Marília, a Tais e a Verônica — fora um Colaborador eventual ou outro... O pessoal da Cásper Líbero chega aqui com um texto perfeito, uma curiosidade enorme pelas coisas e muito fôlego. Com você foi igual? O que a Cásper tem de especial (os alunos, os professores ou o curso em si)? Os cursos de jornalismo são bastante criticados pelos próprios jornalistas, mas eu, pessoalmente, vejo exceções... Como você vê isso? Seu programa, na AIC, é eminentemente "literário", mas tem um módulo para quem quiser desenvolver seu jornalismo... — pensa que os jovens jornalistas hoje obrigatoriamente procuram uma "pós"? Por quê? E o que você(s) oferece(m) como "resposta" a isso?

Eu peguei uma época de mudanças na Cásper. A escola se fortaleceu na década de 90, e hoje é uma das mais importantes do País. Eu estava tão envolvida com meu trabalho — a minha chance — na Carta Editorial que a faculdade acabou ficando em segundo plano. Era a vida real que mais me interessava, escrever matérias jornalísticas, ver publicadas — embora eu tenha tido professores muito bons, e tenha aprendido coisas fundamentais na faculdade. Acho que bons cursos de jornalismo costumam atrair, entre outras, pessoas que gostam de escrever. Essa bagagem prévia com que todo mundo chega à faculdade, mais o que você aprende por lá e o que você consegue experimentar na prática formam uma conjunção que irá definir, pelo menos num primeiro momento, o tipo de profissional que você vai ser. Tudo o que você puder adicionar ao seu leque de conhecimentos é válido. Não existe educação que não valha a pena — e isso se aplica aos cursos de pós-graduação em jornalismo também. Fazer pelo conteúdo, se ele realmente o estimula, e não pelo diploma. Estudar para ter diploma, ainda mais no mundo concorrido de hoje, não é garantia de sucesso, além de ser um motivo, no mínimo, medíocre. É cem vezes melhor investir no seu talento.

3. Pelo seu CV, a gente depreende que você partiu para a prática do jornalismo muito cedo, logo no ano em que entrou na faculdade (1994)... Parece que foi um início auspicioso mesmo lá na Carta Editorial, entre Casa Vogue e Carta Capital. Achei interessante que, na "Vogue", você passou por arquitetura e artes plásticas (assuntos que abordaria posteriormente na Editora D'Avila), enquanto que, na Carta Capital, encarou economia, negócios, até política... É um ótimo "menu degustação" para quem, de certa forma, acabou escolhendo o jornalismo cultural... Como era esse tempo? Pensa que a mesma Carta Editorial, hoje, está formando uma "nova Flávia Rocha" (muitas aspas aqui)? Lembrei do Michel Laub, que é seu amigo e que teve uma trajetória, em revista (no Brasil), parecida com a sua... Não tenho esse background de vocês, mas, criticamente, vejo com muito ceticismo as oportunidades que as publicações em papel "oferecem", atualmente, aos jovens jornalistas... Alguma coisa, em termos de formação, se perdeu lá atrás? Alguma coisa a ver, talvez, com pessoas como o Wagner Carelli?

Jornalistas como Mino Carta e Wagner Carelli são responsáveis pela formação de várias gerações de jornalistas no Brasil. Wagner, inclusive, é um pupilo do Mino, e de outros grandes, como Paulo Francis. Eu e o Michel Laub começamos na Carta Editorial, ambos com 20 anos. Lembro-me de uma das primeiras matérias do Michel, uma reportagem sobre a vida num acampamento sem-terra, no Rio Grande do Sul. Ele passou dias vivendo no acampamento, e escreveu um texto lindo — altamente literário — que foi recebido pelo Mino como talentoso, com grande potencial. Assim era a escola da Carta Editorial — passavam logo matérias importantes para quem estava começando, testavam o fôlego. E a gente vivia sempre no fio da navalha, o estômago revirando, cada vez que um editor lia um texto nosso. Se não estivesse bom o suficiente, tínhamos de reescrever, quantas vezes fosse necessário. Por sorte, íamos escapando, sobrevivendo ali naquele mundo ideal, assustador e fascinante. Depois o Wagner me convidou para participar da criação da revista República, na recém-fundada Editora D'Avila, uma aventura de valor inestimável para uma jovem jornalista. Logo entendi que o que faríamos na República tinha a ver com tudo o que eu mais amava: texto, narrativa jornalística, conteúdo, estilo. Depois o Wagner criou a Bravo!, e o Michel, entrou como editor de livros. Todas as pessoas envolvidas nesses projetos, inclusive o publisher, Luiz Felipe D'Avila, partilhavam da paixão pelo texto.

Falar sobre a situação atual seria imprudente. Não estou diretamente vivendo o dia-a-dia das redações. Mas acho que há sempre gente lá que preza o melhor jornalismo, e que encontra maneiras de fazer um bom trabalho. Tenho certeza de que — mesmo que se pregue o contrário — o bom jornalismo não está completamente extinto da história brasileira. Quero acreditar que uma hora dessas alguém começa uma revolução.

4. Não poderia deixar de falar mais dessas suas passagens pela Bravo! (naquela fase áurea) e pela República (depois — nem sei se dá para dizer — Primeira Leitura)... Na minha "cronologia" do jornalismo cultural brasileiro, eu costumava colocar o Daniel Piza como o último exemplar de uma tradição ainda ligada aos anos 50, 60 e 70 — mas vocês, sob a direção do Wagner Carelli, ainda desfrutaram do privilégio de, em grande medida, "ressuscitar" essa tradição, no final dos anos 90... Como foi esse período? A Bravo!, por exemplo, nunca foi unânime em toda a sua trajetória de quase dez anos, mas, hoje, ninguém discute que vocês escreveram um capítulo do jornalismo cultural no Brasil... Havia essa percepção na época? O mesmo Carelli conta a história com um certo ar de heroísmo, e fica ainda a sugestão de que o empreendimento não duraria mesmo muito (naquela configuração)... Havia esse clima no ar? Você sente saudades? Tem um sonho de revista cultural ainda na cabeça ou valeu mais como experiência mesmo?

O Wagner Carelli tinha plena consciência do que estava fazendo, e da potencialidade dessas revistas. Ele criou todo o projeto editorial da Bravo!, o conceito e a forma, e chamou para participar jornalistas que considerava talentosos, e ótimos profissionais das artes gráficas. Deu a forma final à República, que era ainda mais ousada em termos comerciais do que a Bravo!. Nós sabíamos, a todo o momento, que estávamos fazendo algo novo e importante, que não passaria despercebido. Claro que havia riscos gigantescos — trabalhar numa revista nova é viver perigosamente. Tem de se segurar até o fim. Tudo pode dar errado, e muito dá errado, mesmo quando se acerta. O Luiz Felipe D'Avila era o mais corajoso de todos.

Tenho saudades sim. Mas também sou muito ligada ao presente. Uma experiência se soma à outra. Quanto a fazer uma revista nova, é sempre tentador.

5. Bom, Flávia, depois de fazer nascer a Bravo! e a República, você seguiu, em 2000-2001, para um mestrado em "Fine Arts" — mais especificamente, em "Writing/ Poetry" — pela Universidade de Columbia, em Nova York... Agora, a pergunta que não quer calar: como foi o choque de civilizações (foi muito grande)? Você sai daquela experiência intensíssima, na Editora D'Avila, e entra em uma experiência, também muito intensa, só que "pula" do jornalismo para a poesia... Como foi esse salto? A jornalista estava sufocando a poetisa que, de repente, desabrochou — ou não foi nada muito planejado? É inevitável, também, pedir que você compare... — ainda que guardadas as devidas proporções — sua formação no Brasil e sua "pós" nos EUA... Tem comparação? É esse "gap", essa lacuna, que você quer preencher com o programa de Criação Literária da AIC? Eu tenho amigos que estudaram humanidades fora do Brasil, então imagino, só de relance, o abismo que vocês estão tentando transpor... O que te motiva a fazer isso? Como tem sido, aliás, a recepção?

Sempre escrevia poemas escondida na redação da Bravo!. Nem tão escondida, já que ficava todo mundo junto na redação. Mas ninguém falava nada — e eu ia escrevendo. Daquela produção nada ficou, nenhum. Mas esses poemas que não existem mais me deram um passaporte para o mestrado em Columbia, como parte do meu "application", minha louca tentativa de fazer um curso de criação em outra língua... Eu lamentava que não pudesse fazer aquele curso em português, achava que não acompanharia, e que não teria "coração" para escrever em inglês. Mas vi que dava para transpor a barreira da língua — que havia outras coisas, além da linguagem, que faziam a poesia ser poesia. Foi um choque o contato com a dimensão do mundo editorial americano — uma engrenagem poderosa e funcional. Comecei a ler em inglês e descobri um mundo imenso a que não tinha acesso no Brasil. Participei do que pude desse mundo editorial, e observei muito. Pensei no privilégio que estava tendo, e em como tínhamos de fazer mais e melhor no Brasil. E que o pouco que pudéssemos fazer, quem sabe fizesse alguma diferença.

Sou uma sonhadora, e não sem ingenuidade... (certos desafios a gente só consegue encarar quando se tem ingenuidade). Os cursos da AIC refletem esse sonho de contribuição, de realização, de lugar que nos dê acesso. Meu marido, Steven Richter, que projetou e dirige a AIC, tem uma visão ampla — objetiva e subjetiva — do que estamos construindo. É um grande entusiasta da cultura brasileira e da intercomunicação entre culturas.

6. E você estagiou na New Yorker em 2002-2003... Bem, o que dizer de uma das maiores revistas do mundo? Você me contou que selecionava poesia, e eu apenas suspeito o que deveria ser o e-mail da New Yorker recebendo poemas (e "poemas") do mundo inteiro... Agora, a comparação — se é que ela é, novamente, possível — se dá em outro âmbito: Bravo!, New Yorker, Condé Nast, Editora D'Avila... São mundos que não se tocam? Ou se tocam? A partir de 2003, você começa uma experiência tão importante quanto (ou mais) na revista Rattapallax, onde é editora desde então, selecionando, além de poesia, material relacionado a cinema... O resultado dessa bagagem, refletido no Brasil, aparece em especiais que você organizou, por exemplo, para a Cult, e até em eventos que você coordenou, através da mesma Rattapallax, no Sesc, no Centro Universitário Maria Antônia, no CCSP, no Teatro Paiol de Curitiba e até no Fórum Mundial Social... De repente, você se revelou uma espécie de "Robin Hood" do jornalismo, da poesia e da cultura do/no Brasil?

A experiência na The New Yorker foi como andar e respirar dentro de um sonho. Cada vez que eu pegava o elevador da Condé Nast na Times Square e passava pelos andares: Vanity Fair, Wired, Vogue, GQ... pela cafeteria projetada pelo Frank Gehry... e descia na mitológica The New Yorker, repetia para mim mesma: não acredito que isso esteja acontecendo. Caminhava até minha mesa, posicionada de frente para a sala de um dos editores mais antigos da revista, Roger Angell (que lançou o jovem Woddy Allen e dezenas de outros talentos) e começava o meu trabalho: ler todo o "slush" — todo o grosso de textos enviados para a The New Yorker sob o pretexto de "poesia". Passava horas ali, deletando, um a um, até que surgisse, no meio do dilúvio, um sopro de esperança, ou até mesmo um poema... Tinha coisa boa no meio do slush, que eu imprimia e comentava por escrito, levava ao conhecimento da editora, Alice Quinn, e ela decidia então o que fazer. Publicar, normalmente só os poetas estabelecidos, ligados a editoras de prestígio, que fazem parte desse nicho elaborado que é a poesia nos Estados Unidos, nicho que sobrevive com louvor e inteligência às demandas comerciais da indústria editorial.

A Rattapallax é uma pequena cria dentro desse nicho, ao lado de outros bons journals de literatura. Uma revista interessada em publicar novos autores, de diversos países. Ela acaba de passar por uma reforma editorial; é agora distribuída em DVD, explorando a interdisciplinaridade entre literatura e mídia eletrônica. A Rattapallax é uma revista inovadora e aberta a novas experiências — no espírito dos projetos que tentamos desenvolver. É uma inspiração. O publisher, Ram Devineni, é uma das pessoas mais empreendedoras e ousadas que já conheci. Ele sim está mais para Robin Hood.

7. The Blue House Around Noon ou A Casa Azul ao Meio-Dia (Travessa dos Editores, 2005) é sua tese em Columbia e é seu primeiro livro no Brasil. Como foi a recepção dessa obra? Você talvez seja, hoje, a poeta (ou até "o poeta") que, na sua geração, mais dialogou com a poesia contemporânea no mundo todo... Foi bem compreendida em seu País (quando fez a volta)? Eu vejo suas intervenções por aí sempre de uma maneira muito delicada, algo que eu admiro... Ao contrário de alguns membros da chamada Geração 90, que são tão estridentes (em proporção quase inversa ao seu talento...). Disse isso ao Fabrício Carpinejar um dia e ele, muito meu amigo, me acusou de só admirar as pessoas que se parecem comigo (o que eu tomei, claro, como um elogio)... Enfim: mesmo entendendo a sua atitude low-profile, Flávia, e incentivando-a, eu acho que você e o seu trabalho aparecem pouco, perto do que poderiam (e até deveriam) aparecer... É "culpa da mídia"? É uma opção sua? Você fica preocupada com isso? Ou não faz as coisas pensando tanto em reconhecimento?

O gosto está no fazer, no realizar, no processo. Provavelmente é o que todo mundo diz. Mas é verdade. Reconhecimento vem depois, se vier, e eu tenho ainda tudo por fazer. O primeiro livro de qualquer escritor que não seja gênio praticamente não conta, é uma estréia, uma promessa. Estou aqui me ralando para tentar fazer um segundo — e precisa ser melhor do que o primeiro. Tento cumprir com a minha obrigação. É deliciosa a sensação de cumprir uma etapa, de olhar para um texto publicado, para um filho que nasce — e é seu.

8. Além de "Cities of Chance: an Anthology of New Poetry from Brazil and the United States" (2003) — o especial para a supracitada Rattapallax —, você já editou um "Dossiê de Literatura Americana Contemporânea" (2002), para a referida Cult, editou ainda um número especial sobre poesia brasileira contemporânea, para a revista Poetry Wales (do País de Gales, em 2004), e, atualmente, está envolvida com outra antologia, desta vez para a revista australiana Papertiger, sobre "50 poetas brasileiros contemporâneos", a sair em CD-ROM... Como responde, então, à sempre inevitável pergunta que, nas entrelinhas, afirma que "a poesia morreu", "os poetas estão todos mortos" etc.? Desses 50 brasileiros que você escolheu recentemente — e de tantos outros que você conheceu no seu percurso —, quem indicaria, aqui, para os Leitores desta Entrevista? No Brasil sempre volta aquela constatação de que existem mais poetas do que leitores de poesia... O distanciamento, voluntário ou involuntário, da poesia, em nosso País, é culpa de quem? Dos poetas, das editoras, dos resenhistas ou dos leitores? Vê esse cenário, essa cena, com esperança (ou já com certa desilusão)?

O Brasil está passando por uma fase brilhante em termos de produção poética, com muitos bons poetas publicando, a maioria por pequenas editoras. A crise não é criativa, e sim administrativa. Há um problema de circulação dessa produção pelos meios convencionais, fora do restrito circuito alternativo. Poesia é, em qualquer país do mundo, uma expressão cultural não comercial. Ela sobrevive por mecanismos quase místicos, pelo esforço dos poetas, dos governos, da classe intelectual e — em última instância — do público que teve acesso à poesia, e que a preserva no seu cotidiano. O que difere são os esforços que cada povo, cada país, faz para manter a poesia viva e circulante. Há um entendimento e um consenso em países como França, Itália, Chile, Estados Unidos, Inglaterra e muitos, muitos outros, de que a poesia é importante para a expressão cultural de uma nação, e para a formação humana dos indivíduos. No Brasil, parece que não estamos convencidos disso. Nos Estados Unidos, por exemplo, todos os dias, nas escolas públicas, o professor lê "o poema do dia", que foi escolhido pelo Poet Laureate, um cargo público: o poeta da nação, cujo trabalho é difundir a poesia. Revistas nacionais de grande circulação como a The New Yorker e a The Atlantic, por exemplo, publicam semanalmente poemas em suas páginas. A Time Out dá a agenda de recitais na cidade. Estou só citando exemplos de como é possível manter a poesia viva, desde que haja conscientização, visão. Não dá para dizer que as pessoas não gostam de poesia, se elas nunca leram.

9. Apesar da sua exemplar discrição, de que eu falei acima, encontrei intervenções suas na World Wide Web: Slackfaith.com, Respiro, PD-Literatura, Balacobaco... A WWW é uma saída para a poesia (ou não)? E para o jornalismo? Como vê isso? Você tem um ponto de vista que me interessa, porque, justamente, tem uma carreira sólida em jornalismo, fez um dos melhores mestrados do mundo em matéria de poesia... Como enxerga a recorrente questão das novas tecnologias? Aliás, como vocês abordam esse "suporte", essa plataforma, nos cursos da AIC (aqui vale tanto para literatura quanto para cinema)? Hoje em dia, eu vejo que a formação das pessoas é tão variada e, até por isso mesmo, eu gostaria de ouvir você — que passou por testes rigorosos, que experimentou em formatos diversos e que dialoga, mesmo que em menor grau, com a internet... Na fronteira entre um mundo que parece ficar para trás e outro que presentemente se constrói, como você se coloca?

A internet democratiza o conhecimento — e a idiotice —, há lugar para tudo, com todas as idiossincrasias possíveis. É a marca cultural do século XXI. Ela potencializou ao máximo a questão de acesso e distribuição, tirou das mãos das instituições, dos conta-gotas por onde antes toda produção cultural tinha de passar. Popularizou inclusive o acesso às instituições. Agora é mais como se tudo estivesse num grande tanque, e nós temos de mergulhar para ver o que está lá em baixo. Mais do que nunca precisamos de guias, de Digestivos... sites, publicações, meios de comunicação que funcionam como filtros, que nos orientam, com suas lanternas, nesse mergulho.

Estamos muito ligados aos suportes digitais na AIC, na Rattapallax, nos nossos projetos. Hoje fazer cinema é diferente de dez, e mesmo cinco anos atrás. A tecnologia muda com muita rapidez, e é fundamental acompanhar o processo.

10. Para finalizar, eu deixo registrado aqui em último elogio: você, como eu (Carpinejar, eu assumo), constrói uma carreira como jornalista, como autora, mas, ao mesmo tempo, se preocupa com a formação de jornalistas, de escritores, porque empreende nessa área, através da AIC... As pessoas não se dão conta muitas vezes de que o empreendedorismo — ainda mais no Brasil, que "não é para principiantes" (Tom Jobim) — requer um talento especial... Como você foi se envolver nisso? Foi de "caso pensado" ou acabou surgindo como conseqüência natural das outras coisas? Como se divide entre realizadora (poetisa, jornalista) e empreendedora (diretora e coordenadora da AIC)? Sobra espaço para ser mãe, esposa e tudo o mais? O que te faz continuar? Me conte... E, em última instância, o que te fez voltar para o Brasil, e o que te faz permanecer aqui (uma vez que seu marido é americano etc.)? Será que alguns dos grandes problemas do jornalismo, e da literatura, se resolveriam se tivéssemos mais empreendedores nessas áreas?

Acho que já respondi a essa pergunta, de certa forma, com o que disse antes... Nada é arbitrário. Uma porta leva à outra. Vejo possibilidades no meu caminho, e faço minhas escolhas. E assim vou seguindo, com uma vontade imensa de viver essas experiências que se apresentam. Um otimismo irremediável. Não ter tempo é o chavão. Melhor não se conformar.

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Julio Daio Borges
São Paulo, 5/3/2007

 

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