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Segunda-feira, 2/4/2007
Sérgio Rodrigues
Julio Daio Borges


Sérgio Rodrigues em foto de Simone Rodrigues

Sérgio Rodrigues ou, por extenso, Sérgio Ferreira Rodrigues Pereira, é editor executivo do site NoMínimo, onde assina a coluna diária A Palavra É..., sobre o “português brasileiro”, e o blog Todoprosa, o melhor sobre literatura contemporânea na internet brasileira. Sérgio Rodrigues é, ainda, escritor, autor de O homem que matou o escritor (Objetiva, 2000), sua estréia na ficção, What língua is esta? (Ediouro, 2005), uma coletânea de suas colunas no Jornal do Brasil e no NoMínimo, e do romance As sementes de Flowerville (Objetiva, 2006), junto com Mãos de Cavalo, de Daniel Galera, um dos principais lançamentos do ano passado (inclusive, mote para esta Entrevista).

Apesar de uma atitude bastante simpática em relação à internet (“ao seu modo caótico, ela está revigorando a palavra escrita em nossa cultura de uma forma que há pouco tempo seria impensável”), Sérgio Rodrigues tem uma carreira solidamente construída na grande imprensa. Começou em 1984, como repórter da
Folha, no Rio; já no Jornal do Brasil, passou pela editoria de esportes, foi correspondente em Londres até chegar a repórter especial da revista Domingo; em 1991, de subeditor do caderno “Rio”, em O Globo, passa a editor da Veja Rio; em 1995, assume a chefia de redação da TV Globo, em 1997, ajuda a criar e a editar, já como editor executivo, o novo jornal Lance!, e, em 2000, torna-se editor do segundo caderno de O Globo. Volta ao Jornal do Brasil, como repórter especial e editor, em 2001, onde assina a coluna Língua Viva a partir de 2002, tem uma passagem rápida pela agência de comunicação Selulloid AG, como diretor de redação, e finalmente desembarca no NoMínimo em 2004.

Nesta Entrevista, Sérgio Rodrigues demonstra sua preocupação com o ambiente de recepção de livros no Brasil, nega o epíteto de “ativista literário” e afirma com humildade: “Sou só um jornalista que, por sorte, pode tratar do assunto que considera mais apaixonante entre todos, a literatura”. Conciliando sempre a profissão com sua atividade de escritor, constata que, no seu caso, “o jornalismo nunca foi problema no trato com a linguagem”. Crê, como bom titular de
A Palavra É..., que a missão de ficcionistas e poetas também seja “manter a língua na ponta dos cascos”. Receptivo aos jovens autores, reconhece ainda que “a cena existe” e faz até piada: “Hoje, parece, só dá escritor”. Aos mais velhos, uma sugestão: “Seria interessante se mais escritores estivessem atuando como vidraça e estilingue ao mesmo tempo”. Aos mais jovens, novamente, um alerta: “O mundo glamourizado [dos escritores de hoje] não corresponde à realidade – é uma miragem”. – JDB

1. Sérgio, li no ano passado, no seu blog Todoprosa, en passant, que você considerava o Mãos de Cavalo, do Daniel Galera (Cia. das Letras, 2006), o livro do ano. Engraçado, terminei de ler seu livro agora, As sementes de Flowerville (Objetiva, 2006), e também o considerei um dos “livros” do ano passado. Mas pelo que eu percebi, da acolhida, a trajetória de um foi bem diferente da do outro... Na realidade, você foi corajoso em eleger o livro do Galera – mas não acha que faltou justamente um “Sérgio Rodrigues” para também eleger, publicamente, o seu? (Vamos descontar aqui os elogios rasgados do Polzonoff...) Em resumo, como você bem disse em outra entrevista, será que estamos preparados para um novo “Raduan Nassar”? Por que a crítica literária se converteu nessa coisa morna, mesmo quando obras de monta são lançadas? Nossos críticos pararam no tempo e no espaço? (Fale um pouco da “carreira” do seu Flowerville, tenho curiosidade.)

Faz tempo que o ambiente de recepção de livros no Brasil me preocupa, e olha que isso nada tem a ver com o tratamento recebido pelos meus, que tem sido acima da média: O homem que matou o escritor (Objetiva), minha estréia na ficção, de 2000, teve resenhas mais entusiasmadas do que As sementes de Flowerville, mas o fato é que os dois foram lidos e comentados na maioria dos veículos em que ainda se julga importante ler e comentar literatura. Quer dizer, estou no lucro, e conheço muita gente que, mesmo merecendo, não teve a mesma sorte. O que me preocupa é a qualidade dessa recepção, nossa baixa capacidade de peneirar o mérito e criar entre os consumidores de literatura, que no fim das contas não são tantos assim, um ambiente que seja bom condutor de inteligência, para que a notícia dessa qualidade se espalhe. Isso demandaria uma capacidade de filtrar bobagens e resistir ao hype, ao marketing, muito maior do que nosso establishment literário tem demonstrado. E aqui eu não me refiro só à imprensa tradicional. Não tenho dúvida de que parte do problema se deve ao abandono cada vez maior do jornalismo cultural, especialmente o de literatura, pela maior parte da grande imprensa. O baixo investimento tem insuflado o amadorismo, muitos dos profissionais são mal preparados, as resenhas são pagas com uma “mariola” ou nem são pagas. Resultado: talvez estejamos vendo o ápice de uma velha tradição brasileira: a troca de favores, a “meinha” crítica. Uma voz com autoridade para apontar tendências é mercadoria cada vez mais rara. Mas não acho que o problema possa ser atribuído só à grande imprensa. A crítica acadêmica, com poucas exceções, enfiou a cabeça na areia e se ausentou do jogo, num “w.o.” descarado. Antes disso, já tinha se metido no beco sem saída dos “estudos culturais”, que rebaixam a ficção a mero sintoma psicossocial e descartam qualquer discussão sobre qualidade literária como ideologicamente espúria, o que é uma tragédia para a inteligência. Vivemos, para o bem e para o mal, um tempo de pulverização, de multiplicação de referências. Não existem parâmetros reconhecidos por um número suficiente de pessoas para que o debate literário role direito, o clima é de um certo vale-tudo estético. Aí, claro, vêm os vírus oportunistas e quem acaba se dando bem é a turma da autopromoção, do marketing. Tudo isso é triste e angustiante, mas, pensando bem, talvez não seja de todo ruim. Porque é evidente que no meio desses escombros há um novo ambiente literário em gestação. Acredito que aos poucos a gente vá encontrando uma nova linguagem comum e recuperando a capacidade de debater, de avaliar mérito, de reconhecer qualidade. Por que eu acredito? Porque temos que fazer isso, não existe alternativa, ou seremos condenados à irrelevância eterna. E é na internet que isso vai acontecer, ou melhor, já está, embrionariamente, acontecendo.

2. É inevitável falar do seu pessimismo, como autor, no livro, já que resolvemos falar aqui mal do jornalismo morto-vivo brasileiro... Considero você uma espécie de ativista da literatura, porque simplesmente mantém o melhor blog sobre o assunto, na internet brasileira (com atualizações diárias etc.). Então, o seu otimismo na ação, como gostamos de dizer, contrasta bastante com o seu pessimismo na avaliação. Sei que é primário confundir autor com narrador (poeta com eu-lírico), mas, no teste da balança, você pende para qual prato – para o otimismo de quem reporta, todos os dias, a efervescência “literária” da nossa época ou para o pessimismo de quem não vê muita saída para a nossa civilização? Porque eu confesso que as primeiras páginas de Flowerville me repeliram um pouco, enquanto que eu sempre encontrei boas surpresas no seu blog, respeitei suas opiniões, sempre aprendi um pouco com você etc. Enfim, Sérgio Médico ou Sérgio Monstro?

Obrigado pela avaliação generosa do Todoprosa, mas não me considero nem um ativista, nem particularmente otimista. Sou só um jornalista que, por sorte, pode tratar do assunto que considera mais apaixonante entre todos, a literatura. E tratar dele todos os dias, esteja de bom ou mau humor, com um compromisso caxias que tem menos a ver com o mundo “blogueiro” do que com o dos jornalistas da velha guarda. É isso, também, que me faz temperar o personalismo do Todoprosa com uma dose de impessoalidade que, no caso, me parece uma vantagem no ambiente solipsista e umbiguista da blogosfera. Como sou apaixonado por literatura, falar dela com entusiasmo não é difícil, mas estou longe de ser otimista quanto à “efervescência literária” do nosso tempo. Se a nossa civilização tem saída, não sei. É até possível que o Ocidente tenha um futuro decente e o Brasil, emaranhado no cipoal da periferia, não. De uma forma ou de outra, num cenário cor de rosa ou turvo, torço para que a literatura nos dê obras inesquecíveis. Se serão de glória ou de ruína, é, desse ponto de vista, secundário. Acho que é aí que o Médico encontra o Monstro. O pessimismo que atravessa As sementes de Flowerville me parece tão caricatural, tão exagerado que talvez se torne, paradoxalmente, uma forma de profissão de fé. Acredito muito no poder transformador da arte e sobretudo do humor. É preciso ter uma boa dose de crença na humanidade para achar que vale a pena contar histórias sobre ela, e mais ainda para rir disso tudo.

3. Independente da visão de mundo em Flowerville, que me espantou mais no começo, eu fui capturado pelo seu belo trabalho em matéria de linguagem. Surpreendentemente, eu não me vi “cortando” nada, remendando nada (mentalmente), tinha sempre uma sacada bem pensada, uma reviravolta interessante no capítulo seguinte... A trama é mais complicada do que aparenta no começo e se o aspecto da linguagem não estivesse tão bem resolvido, seria mais um volume ambicioso na intenção mas parco na realização... Como é que você chegou a esse apuro? Meu radar detectou algum Rubem Fonseca de fundo – você mesmo fala em Raymond Chandler e Dashiell Hammett – mas eu acredito que tem algo mais. Você não é um sub-Fonseca, como tantos, nem um subpolicial, como tantos outros – mas é um autor acabado, que amadureceu longe dos holofotes. Como foi essa caminhada? E, curiosidade das curiosidades, como você conciliou isso com o jornalismo (sempre tão castrador em matéria de linguagem)? Por fim, você acha que a crítica percebeu essas sutilezas todas?

Bom, a caminhada é, de certa forma, simples: nunca fiz outra coisa na vida além de escrever. Se só estreei como ficcionista aos 38 anos, com um livro de contos que levei quase oito anos escrevendo e burilando (O homem que matou o escritor), foi por acreditar que até então não tinha produzido nada suficientemente original e bem acabado para merecer chegar ao público. Talvez isso soe engraçado hoje. Reconheço que é um modo de pensar que parece jurássico na era da autopublicação, do blog literário, da criação “em tempo real”, em que novos escritores abrem logo sua oficina à visitação pública e tratam de aprender a escrever à vista de todos, às vezes começando pelo bê-á-bá. Mas éramos assim mesmo, reservados, mesmo porque publicar era dificílimo “naquele tempo” – isto é, anteontem, mas um anteontem que os saltos tecnológicos de repente tornaram remoto. Quanto ao seu radar, está funcionando bem: Rubem Fonseca foi uma influência monstruosa na minha geração. Houve um tempo em que a sombra dele chegou a me impedir de escrever e eu precisei “matar o pai”, tarefa que acabou facilitada pelo declínio que sua obra experimentou a partir de, sei lá, meados dos anos 90. Mas sempre acho reducionista tentar isolar influências: sou um daqueles sujeitos que, por assim dizer, leram “tudo”. Ou seja, o suficiente, tanto de “baixa” quanto de “alta” literatura, para tirar do liquidificador uma voz própria. Talvez por ter decidido primeiro ser escritor, e só depois jornalista, o jornalismo nunca foi um problema no meu trato com a linguagem. Pelo contrário: fiz, em todos os lugares onde trabalhei, um caminho mais ligado ao texto, à forma, ao apuro técnico. Quem já foi obrigado a batucar, dia após dia, títulos criativos de “três de doze”, ou seja, três linhas de doze batidas, ou mesmo “cinco de oito”, como se fazia no tempo da máquina de escrever, sabe que o jornalismo pode ser uma escola preciosa para quem escreve. Poesia concreta perde. O problema ocorre quando o sujeito pensa – e muita gente pensa – que basta escrever como jornalista, trocando a apuração pela imaginação, para ser ficcionista. Não basta. O registro é outro, tudo é diferente. Mas se o cara entender isso, se descobrir sua voz como autor de ficção, o fato de se exercitar diariamente como jornalista não atrapalha. Ajuda, como qualquer exercício. Sei que anda na moda em certos círculos falar mal de escritores-jornalistas. Bobagem. Isso é disputa de mercado no seu nível mais mesquinho. Escritores-não-jornalistas contra escritores-jornalistas. Escritores solteiros contra escritores casados. Escritores gays contra escritores heterossexuais. Uma bobajada sem fim. E para terminar, já que você perguntou: tenho a impressão de que muitos resenhistas, mesmo entre os que elogiaram o livro, não entenderam lá muito bem As sementes de Flowerville. Uma farsa de leitura compulsiva que tem trama, suspense, humor, mas ao mesmo tempo está longe de ser um livrinho descartável, tem ambição. Meio difícil de dar conta. Às vezes eu acho que no Brasil, para ser levado a sério, ajuda à beça se você for meio sorumbático, meio opaco, truncar suas frases...

4. Entrando pelos “anglicismos” do seu Peçanha, eles têm uma conexão com a sua coluna A Palavra É..., e muito provavelmente com o seu livro What língua is esta? (Ediouro, 2005), mas depois eu descobri, além da sua habilidade no manejo desse dialeto (novamente, a linguagem), uma ambição de crítica social. Ou seja, você parece preocupado com a degradação da nossa língua pátria, em certo sentido, mas, ao mesmo tempo, trabalha muito bem as referências pop, do HQ etc., gerando um caldo de cultura, que me fez lembrar, em cinema, o Tarantino. A pergunta é: tudo bem, desde o presidente até o motoboy, nosso “português brasileiro” piorou muito, mas essa salada descontrolada de influências também permitiu que surgisse algo como As sementes de Flowerville – não é tudo uma questão de ponto de vista? Ou você acha que o escritor tem de desempenhar o velho papel de guardião da língua, de fiscal, de alarme a soar quando nossa civilização parece que regride à Pré-história?

Não vejo contradição entre uma coisa e outra. Gostaria de deixar bem claro que o meu trabalho de reflexão sobre a língua não tem nada, absolutamente nada a ver com a patrulha dos xenófobos e dos puristas, nada de Aldo Rebelo nem de Napoleão Mendes de Almeida. Até dos consultórios gramaticais que nos últimos anos andam em voga na imprensa eu procuro manter distância. A língua que me interessa é muito mais lúdica, plástica e aberta a influências. O que eu tento fazer, a partir dela, é crítica cultural. É o que guia tanto uma coluna como A Palavra É... quanto as crônicas do What língua is esta?, coletânea de textos publicados no Jornal do Brasil e no NoMínimo: uma preocupação com a zona lingüística em que vivemos, sim, mas no sentido de tomar posse dela, surfá-la da melhor maneira possível, e nunca de zelar por uma pureza que jamais existiu. Entre a subserviência cultural e a xenofobia, duas atitudes igualmente burras, acho que só o humor – mais uma vez – pode nos salvar. O Peçanha pontuar todas as suas falas com expressões em inglês é uma forma de crítica cultural, claro, mas uma crítica voltada não para aquilo que o nosso idioma incorpora, inevitavelmente, do inglês, esse latim contemporâneo. E sim para a jequice e a ignorância de uma certa classe média brasileira que adora idolatrar o que a cultura americana tem de mais rastaqüera. E que acha que um breakfast vai ser sempre mais saboroso e nutritivo do que qualquer café-da-manhã. No mais, eu vejo no fundo uma base comum ao trabalho com a ficção e com a crônica lingüística: são duas tentativas, uma prática e uma teórica, de atualizar o português brasileiro, de pegar todo esse patrimônio lingüístico que é de uma riqueza espetacular e esfregá-lo no nariz do nosso tempo. E vice-versa. Pode soar meio pomposo, mas acho que esta é uma das missões principais de ficcionistas e poetas: manter a língua na ponta dos cascos. Mesmo que eles não tenham plena consciência disso.

5. Voltando ao “outro livro do ano”, o Mãos de Cavalo, ao Galera e aos blogs, muita gente diz que a “língua do MSN” está acabando com a palavra escrita, mas eu acho justo o contrário: foi a internet que trouxe, para nós, de repente, um Daniel Galera, que surgiu na CardosOnline, em 1998, que fundou a Livros do Mal, em 2001, e que só no ano passado – cinco anos depois – foi “encampado” pela Companhia das Letras etc. O que você pensa a respeito? Eu imagino que por manter um blog que é, talvez, “a referência” para essa multidão de “novos” escritores que estão on-line, você seja bombardeado com “originais”, links bobos e e-mails carregados de pedidos esdrúxulos. De qualquer forma, medriocridades à parte, você vê, como eu, uma certa “cena”? E acredita, mais além, – como a Flávia Rocha, na poesia – que o problema é mais de administração do que de inspiração? Estamos, obviamente, num momento de transição, mas você enxerga alguma coisa de mais consistente, ao menos para o futuro?

A “cena” existe. Por enquanto, tem mais voluntarismo e entusiasmo do que sabedoria, mais quantidade do que qualidade, a tal ponto que eu às vezes me pego pensando: puxa, tão pouca gente lendo ficção no Brasil e tanta gente escrevendo... Me lembra o tempo, ali em meados dos anos 80, em que todo mundo que não tinha uma banda de rock era “videomaker”. Hoje, parece, só dá escritor. O que é esquisito, se você parar para pensar. Por que não aproveitam essa paixão para se dedicarem a ser grandes leitores, leitores notáveis, mercadoria de que precisamos desesperadamente, em vez de serem escritores medianos como tantos outros? O Borges dizia se orgulhar mais dos livros que tinha lido do que daqueles que tinha escrito. Um pouco dessa humildade – mesmo que ela tenha muito de pose, no caso do gênio argentino – nos faria bem. Mas não sou ingrato nem maluco: dou boas-vindas ao milagre de haver de repente uma ou duas gerações tão ligadas em literatura, quem podia prever uma coisa dessas há dez anos? E, como eu disse ali atrás, acredito que nessa confusão a gente esteja criando, bem ou mal, o ambiente literário que vai ocupar o vácuo de inteligência deixado pela imprensa cultural de papel e pela fuga dos acadêmicos dos debates sobre literatura contemporânea. Só precisamos de tempo, paciência, perseverança e estômago: tudo indica que a fase de decantação virá. Agora, “culpar” a internet é absurdo. Ela é o mensageiro, não a má notícia. E muito provavelmente será a cura, não a doença. Esse ódio ilógico à cultura digital me lembra aquela história de apontar como ponto fraco do Mãos de Cavalo, que você citou, o destaque que o livro dá a um “tema menor e indigno” como os videogames. Houve quem usasse esse argumento a sério, por incrível que pareça.

6. Do outro lado do balcão da internet, escritores como o Bernardo Carvalho revelam um certo desespero e proclamam que o interesse das pessoas comuns pela literatura está minguando. É estranho, mas ao mesmo tempo em que eu vejo a Web se expandindo desgovernadamente, eu constato essa desolação por parte dos escritores de papel “tradicionais”. Evidente que a crise do papel como suporte atinge, inevitavelmente, as editoras – mas você acha que eles têm razão em entoar esse coro tipo “fim do mundo”? Eu considero a sua situação muito interessante porque você está no meio do caminho: você tem uma trajetória no jornalismo estabelecido mas mergulhou de cabeça no “on-line” e convive, diariamente, com os “novatos”. Afinal de contas, a literatura, como nós a conhecíamos, acabou ou não acabou? O que pensa o crítico e o que pensa o escritor?

Acho que o “papel social” do escritor, digamos assim, continua passando por um processo de encolhimento que não é de hoje. Me lembro de uma entrevista em que o Fernando Sabino, se não me engano ali pelo início dos anos 70, dizia em tom queixoso ter chegado tarde ao baile, pois constatava que os escritores das gerações anteriores à dele tinham uma importância muito maior, uma voz muito mais forte na sociedade. Se o Sabino já se sentia rebaixado naquele tempo, como se sentirá um contemporâneo nosso? O fenômeno não é brasileiro, é provavelmente universal, e tem a ver com tantos fatores que talvez seja até meio ingênuo apontar o mais óbvio deles, o crescimento da cultura audiovisual em detrimento da escrita. Mas no nosso país eu vejo um agravante claro, que é a catástrofe educacional. Lemos pouquíssimo. Você entra no ônibus, no metrô, e ninguém está lendo um livro. Nunca. Nem romance Sabrina. Nem faroeste de banca de jornal. Isso é um dado grave, a meu ver. Mas daí a acreditar em visões apocalípticas vai uma grande distância. O Marçal Aquino diz que nós, os leitores de ficção de qualidade, formamos uma seita, que é assim mesmo e assim será. Não sei. Só acredito – talvez porque, deixando de acreditar nisso, eu estaria frito – que o interesse pela literatura vai existir sempre. Que ela é uma necessidade básica. E também sei, acima de qualquer dúvida, que a internet, ao seu modo caótico, está revigorando a palavra escrita em nossa cultura de uma forma que há pouco tempo seria impensável. O resto, só esperando para ver. Acredito que todas as previsões, por definição, estão fadadas ao erro.

7. Sem querer pegar no pé do Bernardo Carvalho – e já pegando... –, uma vez ele disse que não agüentou a barra de ser, simultaneamente, crítico literário semanal da Folha e escritor. Penso que é um direito seu abandonar a Folha e todos aqueles chatos “literários” que ficam implorando para elogiar suas “obras”, mas, não sei, não, algo me diz que há uma ponta de covardia nessa atitude. Como você, Sérgio Rodrigues, lida com esse duplo papel? Quando foi divulgar o seu livro, teve algum criticado que te virou a cara? No fundo, eu acredito que se tivéssemos mais “militantes literários” (insisto) como você, jogando nas duas posições, conseguiríamos diminuir o ruído e a poluição de Jabutis de araque, de vanguardas perpétuas e de poetastros que fariam melhor em se calar. Não vejo problema na superprodução... Vejo mais problema na condescendência da indústria de releases em que se transformou a nossa impressa cultural... Será que o papel ainda tem salvação ou os burocratas tomaram definitivamente conta?

Entendo o Bernardo Carvalho: o duplo papel não tem nada de confortável. Em mercados mais maduros e menos regulados pela lógica sérgio-buarquiana da “cordialidade”, é comum que escritores sejam também críticos. Mesmo sujeitos do tamanho de John Updike e J.M. Coetzee podem ser encontrados rotineiramente resenhando o trabalho de colegas, o que eu acho maravilhoso e, ao mesmo tempo, muito complicado de exercitar no Brasil. Mas acredito que, por isso mesmo, existe um papel civilizador em militar dos dois lados do balcão, resistindo à pressão do compadrio e tentando ser fiel apenas à sua consciência. Paga-se um preço, claro. É possível que o Flowerville tenha perdido uma ou outra boa resenha porque eu não quis jogar o jogo, mas não penso nisso. E também não falta quem, julgando os outros por seus próprios padrões, veja em tudo o que você escreve, como jornalista de literatura, um subtexto de favorecimento à sua própria posição como escritor. Isso é particularmente irritante, essa suposição prévia de falta de caráter que está sempre na cabeça de quem tem falhas de caráter. Como eu disse, confortável não é. Mas concordo que seria interessante se mais escritores estivessem atuando ao mesmo tempo como vidraça e estilingue. Voariam cacos para todos os lados, mas seria uma bagunça saudável. E certamente mais instigante do que o jornalismo literário que temos hoje, que em grande parte espelha o rebaixamento intelectual da imprensa em geral e já não anda tão interessado assim em literatura, mas na biografia do autor, sua vida sexual, sua fotogenia, seu círculo de amizades. Coisas que, em tese, “vendem”. O que nem ao menos é verdade. Mesmo apelando assim, não vendem nada. Sobre o suporte, não sou radical. O meio eletrônico também derrapa muito, e não vejo por que o papel ainda não nos possa reservar boas surpresas. O fato é que a tendência aponta para a internet. As melhores novidades têm vindo daí.

8. Falando ainda em jornalismo, eu ficava observando a violência do seu Victorino Peçanha e ficava imaginando como o editor do NoMínimo poderia ter convivido – e recriado – uma figura assim. Aí, li seu currículo e lá encontrei toda a sua trajetória pelas Organizações Globo – então, entendi melhor. Não duvido que realmente aconteça o que aconteceu ao pobre paparazzo da sua história, que cutucou a onça do poder com vara curta, mas você acha que o mainstream segue ainda com essa bola toda? Digo, a truculência do Peçanha é um retrato fiel de um tempo em que a relação licenciosa entre os donos do poder e os grandes conglomerados de mídia era explícita. Aqui do meu modesto ângulo, porém, com a ascensão da internet, com a diluição dos canais de comunicação de antes, vejo o jornalismo das famílias cada vez mais alquebrado, tropeçando nos próprios investimentos, ajoelhando no altar das consultorias, implorando por uma aquisição... Estou certo ou estou errado?

A crise da imprensa tradicional fica cada vez mais evidente no mundo inteiro. Se ela vai conduzir a uma reestruturação realmente profunda no cenário da comunicação, com a substituição de poucos grupos controladores por uma infinidade de vozes sem centro definido, acho cedo para dizer. Para ser fiel ao pessimismo de Flowerville, eu diria ser mais provável que as mudanças não sejam tão profundas assim, no fim das contas. É claro que a internet, por sua natureza, é um meio difícil de controlar, mas também é verdade que grandes grupos de comunicação estão investindo pesadamente nela. E se o meio é intrinsecamente democrático, como se explica que tenha parido um polvo do tamanho do Google? E as empresas tradicionais, serão mesmo paquidérmicas demais para sobreviver nesse novo tempo? Ou o tempo não é tão novo quanto suspeitamos, mas apenas uma forma de mudar para que tudo fique igual, como disse o Lampedusa? Só uma bola de cristal esclareceria isso.

9. O seu blog eu sei que é poroso a essa espécie de “revolução” na literatura e no jornalismo, mas e o NoMínimo – até que ponto ele é receptivo à “interferência” dos leitores? Pode vir a ser uma mídia mais colaborativa no futuro? Aliás, como você analisa fenômenos como o Overmundo, as tentativas de Digg no Brasil e até o Newsvine? Acha que é por aí – em outras palavras, até onde você vai: acredita mais num modelo híbrido, com internautas e jornalistas, ou soltaria as rédeas nas mãos dos leitores? Eu vejo o NoMínimo com uma credibilidade talvez imbatível, em matéria de revistas eletrônicas, pelos nomes que abriga desde o início, mas não reconheço o site como um apontador de tendências, em termos de novos talentos. Isso preocupa você ou acha que não é, simplesmente, a função do NoMínimo? O investimento nos blogs foi uma estratégia (que funcionou bem apenas num dado momento) ou, para vocês, o futuro do colunismo aponta mesmo para os blogueiros?

O NoMínimo nunca teve a pretensão de ser a vanguarda da internet brasileira, seu papel é mais o de formar uma espécie de meio-campo de qualidade e bom toque de bola. Que outros arrisquem os chutes de longa distância. Com exceção do Daniel Galera, o novato do time, todo mundo aqui veio do jornalismo tradicional, trouxe para a internet um modo de encarar notícia e opinião que é enraizado no velho jornalismo. No melhor lado do velho jornalismo, digamos assim. Um lado que começou a perder tanto espaço nas redações que de repente foi possível montar uma seleção desse nível, cheia de craques, quase todos oriundos de postos de comando em épocas mais inteligentes e menos bicudas da imprensa de papel. Com essa bagagem, armamos a tendinha e começamos a apanhar. E a aprender. No início, quase todas as colunas eram renovadas semanalmente, e só a do Pedro Doria, já então diária, tinha espaço para comentários dos leitores. A Palavra É... veio em seguida nessa trilha. Quando ficou claro que a interatividade é uma exigência dos leitores e que a periodicidade semanal não combina com a vocação da internet, a decisão de criar uma série de colunas diárias abertas a comentaristas, ou seja, blogs de informação, foi natural. Acompanho as experiências mais radicais de participação do público com interesse, mas, confesso, com algum ceticismo também. Passada a novidade, até certo ponto populista, do faça-você-mesmo, não sei o que sobrará. Concordo com o Sérgio Augusto quando ele disse em entrevista recente a você que dá graças a Deus por não terem inventado essa moda na medicina e na engenharia civil. Já que as minhas metáforas andam tão futebolísticas quanto as do Lula, imagino o Maracanã: milhares de pessoas vão ver craques – ou pelo menos, vá lá, profissionais – jogarem. Quem pagaria para ver uma pelada de torcedores? Isso não significa blindar a ordem vigente, tentar deter o movimento, de jeito nenhum. Significa manter os pés no chão e observar. A descentralização da informação que a internet promete – e até certo ponto cumpre – tem um potencial revolucionário, é verdade. Mas não creio que seja o de transformar o Maracanã num aglomerado de dezenas de milhares de jogadores. E sim o de permitir que aqueles craques escondidos na arquibancada mostrem seu jogo e ganhem acesso ao campo.

10. Agora, a pergunta clássica. Para aquele cara que está começando e que quer se dividir, como você, entre o jornalismo e a literatura, qual conselho você daria? Já li você aconselhando a pessoa a desistir de escrever, se ela conseguisse... É influência do pessimismo de Flowerville? Falando sério: melhor estudar jornalismo ou melhor ir praticar direto no blog? A propósito: blog é lugar de literatura? É um caminho para os escritores – e não só para os jornalistas – de hoje e de amanhã? Será que alguém, lá atrás, se arrepende de ter encorajado, por exemplo, essa Geração 90 que ora inventa movimentos para sustentar escritores falidos, ora toma de assalto a Lei Rouanet para explorar escritores que não precisam disso? Será que o melhor a fazer é coibir mesmo a expansão de uma “casta” que, inflacionada, prejudica a imagem da nossa literatura?

“Desistam se puderem” é um conselho que vale para os candidatos a escritor, não para jornalistas, e é sério. O jogo é duro, o número de baixas é avassalador, as recompensas são magras. Não custa enfatizar isso, principalmente num momento em que uma certa agitação social em torno da literatura promete um mundo glamourizado que não corresponde de forma alguma à realidade. É uma miragem. Como disse o Martin Amis numa entrevista outro dia, vida de escritor não tem nada de excitante, o cara passa o dia inteiro “de pantufas, enfiando o dedo no nariz e coçando a bunda”. Se, depois de considerar tudo isso, o sujeito ainda insistir em seguir carreira, então é porque é escritor mesmo. Nesse caso, sou obrigado a lhe dar os parabéns e desejar toda a sorte do mundo. Ler muito, ler tudo, é o primeiro e mais óbvio dos mandamentos. Escrever, escrever e reescrever, o segundo. Faculdade nunca atrapalha, ajuda a programar uma base de cultura geral e criar um microcosmo de debate que podem ser adquiridos de outro modo, claro, mas com mais dificuldade. É possível que o curso de Jornalismo já não seja o mais indicado, embora para mim tenha funcionado bem. História, quem sabe, ou Filosofia – isso vai depender da inclinação de cada um. Ter um blog é provavelmente inevitável a esta altura do furdunço, mas tenho dúvidas sobre a conveniência de exercitar ficção nele. Não ter tanta pressa, eis um conselho que acho importantíssimo. O tempo de amadurecimento da literatura e o tempo do blog são mais do que diferentes, chegam a ser antagônicos. O problema é que, uma vez publicado, qualquer texto passa por uma espécie de cristalização – esta é a minha experiência, pelo menos – que dificulta reescrevê-lo depois. E reescrever é a alma do negócio.

Para ir além





Julio Daio Borges
São Paulo, 2/4/2007

 

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