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Segunda-feira, 4/8/2008
Ana Elisa Ribeiro
Julio Daio Borges

Ana Elisa Ribeiro é Colunista do Digestivo Cultural desde 2003. Como poeta, publicou Poesinha (1997), Perversa (Ciência do Acidente, 2002) e, agora, lança Fresta por onde olhar (pelo selo InterDitado) — que é o mote para esta Entrevista. Ex-titular do blog Estante de livros on-line, que fez história no início dos anos 2000, capitaneou o extinto site literário Patife e co-editou, em papel, o fanzine Logo Logos.

Natural de Belo Horizonte, Ana Elisa Ribeiro construiu também uma sólida carreira acadêmica. É mestre em Lingüística, pela UFMG, com a tese
Ler na tela — novos suportes para velhas tecnologias (2003); e é doutora, desde este ano, em Lingüística Aplicada (pela mesma universidade), com a tese Navegar lendo, ler navegando — Aspectos do letramento digital e da leitura de jornais. Além de tudo isso, é considerada uma das maiores cronistas de sua geração, é casada com o jornalista Jorge Rocha e é mãe de Eduardo Ribeiro Rocha.

Nesta Entrevista, Ana E fala da sua estréia em papel ("Autor não pode ter medo de leitor"); das suas influências como escritora ("Até o ensino médio, eu lia 100 livros de literatura por ano"); e de sua interação com o público ("As mulheres se sentem próximas de mim"). Defende o ensino ("A maioria dos professores merece respeito — é gente que investiu em uma carreira"); comenta sobre os suportes digitais ("A internet deve ser o melhor sistema de distribuição"); e critica, como todo mundo, a grande mídia ("A imprensa tradicional continua lá, fazendo um pouco pior o que sempre fez"). Neste caudaloso bate-papo, Ana Elisa Ribeiro se coloca mineiramente entre a "professora fanática" e a "escritora por absoluto amor à língua". — JDB


1. Ana E, eu queria começar pelo fim. Você voltou à poesia com o seu novo livro, Fresta por onde olhar — ou talvez voltou para o lugar de onde nunca saiu. Há alguns anos, eu estava crente que você ia lançar — depois de dois livros de poemas, o Poesinha (1997) e o Perversa (2002) — um livro de contos. Eu lembro que você tirava sarro de que — na nossa geração de escritores — a ordem sempre era: livro de poemas, livro de contos e romance. Em algum momento, eu senti que você rompeu com essa seqüência, e se tornou mais independente desse movimento geracional, digamos. Eu queria saber, então, como foi o retorno à poesia — ou, simplesmente, como foi a permanência na poesia. E, obviamente, por que você não foi adiante com a edição em livro de sua prosa. Sei que sôo repetitivo aqui, mas sempre fui muito entusiasta daqueles seus contos no seu blog — daquelas coisas que eu republicava aqui no Digestivo... Enfim, o seu negócio, mesmo, é poesia? Entre capas, você é mais poeta do que tudo?

Jui (porque é assim que eu, mineiramente, te chamo desde sempre, permita-me), eu sempre fui poeta. Para mim, nunca houve dúvida. Mas é que ser poeta, neste caso, não é exatamente ser uma lírica insistente. Nada disso, você sabe. Meu lirismo é debochado demais. Não é poesia, enfim, para muita gente que me lê. Tenho de tomar um cuidado danado para não soar publicitária, entende? Escrevo num sarcasmo engraçado, mesmo quando falo de amor, e sempre falo disso. E então preciso cuidar do texto para que ele não se pareça slogan. Seria péssimo. Ou para que não se pareça com máximas, piadinhas, tiradinhas espirituosas. Talvez seja o que dizem de mim: não é poeta, é autora de bons chistes. Mas de vez em quando alguém que eu respeito me vem com um elogio. O José Eduardo Gonçalves, jornalista bamba aqui de BH, alucina com uns poemas. O Luís Alberto Brandão, poeta e professor dos mais bacanas, vem me dizer que curtiu um poema "X" ou "Y". Isso me deixa relaxada com essa produção.

Quando publiquei livro pela primeira vez, em 1997, pedi o auxílio de uma professora, a Myriam Ávila. Ela é boa leitora, atenciosa, gentil. Eu freqüentava as aulas de Teoria da Literatura que ela dava na UFMG. Além de ser quem é, é filha do Affonso Ávila e da Laís Correa de Araújo. Tinha a poesia correndo nas veias, claro. E então pedi que ela lesse meu "original". Eu não queria saber se devia ou não publicar aquilo. Isso era uma decisão. E acho que é sempre uma decisão muito particular e solitária mesmo. Ninguém decide isso junto com ninguém. Você cisma, ganha uma segurança, não sei. Essa segurança nasceu de mim e das leituras atentas que um namorado fez do meu livrinho. Pedi à Myriam para confirmar, ver o que ela dizia. Autor não pode ter medo de leitor. É preciso ter bons leitores, claro, mas não permissivos. Daí a Myriam, sem eu dizer nada, pediu que a mãe dela, a Laís (poeta, crítica de literatura) também lesse. Isso foi um susto. A Laís leu, apreciou (no sentido de examinar, mesmo) e não apenas disse que eu deveria publicar, como também fez uma criteriosa seleção/edição do livro. Jogou uns poemas fora, deu sugestões de ajustes etc. A gentileza dela era ainda maior do que isso. Enviou um cartão (que guardo comigo, lógico) com palavras de incentivo. E naquele "diálogo" (nunca nos vimos pessoalmente) Laís disse que eu deveria cortar todos os poemas "engraçadinhos". Eu pensei nisso, com todo o respeito do mundo, mas não cortei nenhum. Ali eu descobri que alguma coisa incômoda, mas consistente, fazia parte da minha poesia. Era esse "engraçado" que me juntava em uma poeta. Essa veia nunca me deixou. E acho que ela aparecia nos contos e nas crônicas. Não acha? Estou errada?

Os contos foram uma aventura. E ainda são. Eu mesma os desprezo um pouco. Há contistas realmente bacanas. Mas há quem não seja poeta e não dê conta de fazer romances, então se esconda pelo meio do caminho. Continuo achando que houve uma espécie de procissão dos poetas que avançaram para o conto, todos na mesma época. Nem sempre conseguiram ser romancistas. São pegadas muito diferentes. Não se é polígrafo só porque se quer sê-lo. Você acredita em ex-gay? E em ex-poeta? Há coisas que você faz que colam em você. Poesia é uma delas. Há bons poetas que se transformaram em contistas medíocres. Nem comento os romances. Mas também deixei de ler tudo o que surgia. Não dá para acompanhar. E fiquei com preguiça de acompanhar. Eu não tive saco para fazer esse percurso.

Os contos do blog eram curtição pura. Eram uma espécie de diário. Na época, eu trabalhava em uma editora de livros de medicina, lembra? Numa sala sem janela, com paredes bege, quase sem contato com o mundo exterior. Uma experiência curiosa. E então, além do contato com os artigos sobre problemas psiquiátricos e os livros de pediatria ambulatorial, eu escrevia continhos para respirar. Lembra das historinhas das bichas Kinsey e Glasgow? Fizeram sucesso. Esses nomes foram tirados dos livros de medicina. São escalas tipo "outras", como existe a escala Richter, só que são para dor, quantidade de pêlos no corpo, essas coisas. Eu transformava o cotidiano massacrante e emburrecedor de trabalhar em uma sala bege sem janela em contos engraçados. Minha conexão com o mundo. O Estante, em 2002, foi um blog de sucesso. Pensei em publicar isso mesmo. Com o tempo, juntei uma quantidade de contos que dava um livro. A Altana, de São Paulo, quis publicar, mas vieram com aquele papo de "você paga a metade". Só que a metade deles era tudo. Não sabiam que eu trabalhava no mercado editorial, fazia cotação de preços todos os dias. Não pago para publicar conto. Ainda mais naquela época.

Já as crônicas... são outra história. Assim como os poemas. Meus livros de poesia se pagam no lançamento. O resto é lucro. O negócio é ver os poemas voando. Depois que poesia se lança, ela ganha asas. Conto, não. As pessoas começam a ler poesia sua nos saraus mais inesperados. Conto, não. As pessoas copiam poemas seus em tudo quanto é canto. Conto... Romance, então... Crônica também tem um trajeto bacana. Crônica vai parar em sala de aula, em prova de vestibular, em prova de concurso, em debate. Coisa mais bacana. Um dia vou publicar um livro de crônicas. Fabrício Carpinejar anda me tentando com essa idéia. Estou devendo uma primeira seleção para ele. Eis um leitor bom de diálogo. Sempre fui poeta.

Fiquei sem livros por intervalos de mais ou menos 5 anos, mas não deixei de escrever. Os livros precisam ficar vencidos. O Perversa demorou a perder a validade (se é que existe isso). Até hoje me chamam de "Perversa". Gastei bastante aqueles poemas e passei a aparecer com outros, mais novos, embaixo do braço. O negócio é que moro em Minas. Se eu morasse em São Paulo, talvez parecesse que eu existo mais do que aqui. O barato é esse mesmo: não depender de morar em lugar algum. Daqui da minha Renascença, bairro sem qualquer glamour em BH, eu escrevo pro Digestivo, publico meus livros e vou a festivais. É a gente que interessa. Lancei o Fresta porque já estava na hora que queimar outro cartucho. Muitos poemas dele são conhecidos aqui. Fui a muitos festivais ler poemas. Me diverti muito com platéias. Publiquei em revistas. A poeta nunca esteve em stand by. A prosa é outra história.

2. Continuando, eu queria que você falasse das suas influências poéticas. Já li — algumas vezes; até aqui — da sua descoberta, fundamental, de que havia poetas vivos. E te relaciono, pelos seus testemunhos, com o Leminski e a Ana Cristina César — mas hoje, lendo você no novo livro, eu encontro alguma coisa que vai além deles. Queria que você falasse, também, dos contemporâneos que, de alguma forma, influenciaram você — como o Ricardo Aleixo que você, volta e meia, cita. Ou a primeira fase do seu segundo editor na Ciência do Acidente, o Joca Reiners Terron. Se não me engano, foi você quem me apresentou também o João Filho — e eu descobri (através do Régis Bonvicino) o impressionante Douglas Diegues. Você se interessa, igualmente, pela prosa poética de autores como eles? Será, inclusive, que o crossover, entre gêneros, é a marca registrada de quem publica na internet?

Descobrir poetas vivos foi fundamental. Isso teve a ver com a escola, com meus tempos de final do ensino fundamental, início do ensino médio. Foi lá que tive contato com um leque de escritores, inclusive alguns contemporâneos.

Tive contato com professor ruim assim como todo mundo. E não porque tenha estudado em escola pública. Isso é um discurso atravessado e irrefletido. A maioria das escolas privadas é muito ruim. O mundo está cheio de professor repetidor (Comenius já dizia que os professores são capazes de dar aulas assim como alguns instrumentistas lêem partituras). Está cheio de professor que não lê. Professor que não lê é um contra-senso em qualquer área, não é aspecto peculiar às aulas de língua. É absurdo um cara que dá aulas de Física e não lê. Não estou falando de ler Machado de Assis. Estou falando de ler. Os franceses não ficam o ano inteiro sentados sobre um Émile Zola ou o clássico que seja. Eles lêem bastante, várias coisas. No Brasil, além de se ler pouco, o pouco que se lê não conta. Somos elitistas muito hipócritas. Achamos lindo discursar sobre o que nós não fazemos. Está cheio de professor que não lê e de profissionais de tudo quanto há que não lêem sobre suas áreas. Eu tive professores ruins, que tinham lido menos do que eu.

Tenho tudo anotado. Até o ensino médio, eu lia uma média de 100 livros por ano (de literatura) por absoluta curiosidade. Era insistente, lia até o fim, lia como podia, do alto dos meus 15 anos de idade. Aprendi muitas coisas no contato com aquelas obras, aquelas linguagens, inclusive que havia poetas vivos, escritores vivos. Quando Drummond morreu, eu estava na quinta série. Achei impressionante. Guardo até hoje os recortes de jornal dos cadernos especiais lançados na ocasião, em homenagem. Fiquei estarrecida. Ser poeta é coisa de gente bem viva. Passei a ler menos quando entrei na faculdade. Quer dizer, passei a ler menos literatura e enveredei por uma seara mais árida um pouco, mas não menos apaixonante, que são os textos técnicos da minha área.

Para escrever, a gente pode ser mimético. Da mesma maneira que em muitas coisas na vida, é impossível aprender tudo o que a gente aprende por dia, por mês, por ano, se dependêssemos apenas de conhecimento explícito, entende, Julio? Grande parte do que aprendemos é tácito, ou seja, aprendemos observando, imitando, tentando, fazendo, mimetizando, intuindo. Quem saca isso desde cedo, ganha tempo. Quem fica dependendo dos outros (o professor tem de dizer, pedir, ordenar, explicar etc.) está frito.

Sofri uma influência incrível dos poetas dos anos 1970. Foi um impacto muito grande conhecer a poesia do Paulo Leminski em uma apostila de colégio. É ali que as pessoas têm contato com textos pela primeira vez ou muitas vezes. A maior parte dos brasileiros não tem (ou diz não ter) grana para comprar livros. A maioria também não faz a menor questão de freqüentar armazéns de conhecimento, bibliotecas públicas, por exemplo. Não sou de família rica, mas minha mãe não amarrava muito quando o assunto era escola. Comprava grande parte dos livros indicados no colégio. Eu lia os meus e os dos meus irmãos. Juntei tudo. Estão todos sob minha guarda, além de uns que meu pai ganhou quando era criança (uma edição do Pequeno Príncipe da década de 1950, com a dedicatória da professora dele).

Tive contato com Leminski numa abertura de apostila que a professora mandou saltar. Eu nunca saltei nada sem saber por quê. Voltei. Li o poema. Coisa mínima, sobre um dia sustenido. Morri rápido e voltei antes que a professora notasse meu ímpeto de chutar-lhe as canelas. Como é que se priva alguém de conhecer uma coisa daquelas? Esse pessoal não tem mesmo bom humor. Parei de lanchar e juntei a grana para comprar livros daquele cara. Foram meus primeiros. La vie en close, acho. Depois dele, uma penca de "marginais".

E depois fui virando poeta e passei a conhecê-los. Conhecer o Sérgio Fantini foi cinematográfico. Conhecer o Chacal, que ficava ali na prateleira de honra da minha estante de adolescente. O Ricardo Aleixo não influenciou a minha escrita. Cito sempre o poeta porque é alguém que eu respeito muito. É só ler a poesia dele (ou assistir às performances) que se vê que é outra coisa, outro trajeto. Não tenho nada de performer. Não faço versos plásticos. As palavras vão se apinhando na minha folha de papel. O Ricardo, não. Ele é engenheiro de linguagem. É diferente. Melhor ainda, é arquiteto. De som e de texto. É muito mais elaborado do que meu sambinha. Mas Ricardo me incentivou bastante.

Assim como Fantini e outros. Fantini é meu amigo querido, de mesas de comer e beber. E de livros. Lançamos juntos nossos últimos cartuchos. Joca Terron foi meu editor, meu leitor também. Comprei um livro dele em 2001, enviei uma carta pelos Correios e ele me respondeu por e-mail, alguns meses depois. Isso disparou um contato intenso, desencadeou um processo de mudança no meu jeito de publicar e escrever. Conheci muita gente nessa época. Depois, sumi um pouco, porque isso tudo deixa a vida real da gente meio parada. Ana Cristina César também não está entre minhas influências. Li, curti, lembro até hoje de momentos ao pé de A teus pés, mas eu achava meio chato, meio íntimo demais, lírico além da minha conta. Mas até aí o Brasil contava poucas poetas... é inevitável que todas nos pareçamos, mesmo quando não nos parecemos de fato. Não me interesso muito por prosa poética... quer dizer, depende. Se não for apenas malabarismo lingüístico, eu curto. Mas não sei mais o que andam fazendo os prosadores ou poetas. Em geral eles renegam a poesia.

3. Queria voltar, um pouco, aos seus contos. Você me apresentou, igualmente, a Ivana Arruda Leite, do Falo de Mulher. E eu ainda relaciono vocês, de alguma forma, à Cíntia Moscovich — que não escreve contos muito curtos, mas que tem narrativas curtas maravilhosas. Quando eu comecei a ler você, no blog, eu fiquei encantado — e repassei para as mulheres à minha volta. Desde a minha mãe até a minha irmã, passando pela Carol e pelas amigas da Carol. Algumas choravam, outras riam — todas se emocionavam, porque você era meio porta-voz do que elas estavam vivendo, ou sentindo, e não tinham visto ainda tratado como literatura. Eu não quero entrar, aqui, na polêmica da "literatura feminina" — mas não acha que, ainda hoje, são poucas as escritoras falando de um ponto de vista autenticamente feminino? E não acha que as mulheres, as leitoras, sentem falta desse "olhar" na literatura? Porque, por exemplo, a novela das oito é metida a falar "para as mulheres", mas são, quase sempre, homens que escrevem...

Isso não me incomoda em nada, Jui. Para mim, tanto faz. Eu escrevo sobre coisas que atazanam uma mulher, que sou eu, e de um jeito que dificilmente poderia ser escrito por um homem. Um bom analista de discurso saca rapidinho o que está por trás de textos escritos por homens ou mulheres. Pressupostos, premissas, entrelinhas, formações discursivas etc. Sei lá que nome tem isso. O negócio é que um discurso muito feminino atravessa o meu texto, mesmo quando eu não penso nisso. "Eu sei, meu bem/ que seu sonho é comer uma sueca/ alta loura e boa// mas finge/ meu amor/ fecha o olho e finge/ o meu cabelo/ a gente tinge". Será que um homem daria a isso o potencial trágico que o poema tem? Talvez fosse possível o jogo de rimas, o "engraçadinho" de tudo. As pessoas sempre riem bastante quando leio isso em público. É um top hit nos festivais. Tipo "faixa de trabalho". Mas tem o peso das relações entre mulheres e homens aí, tem aí a experiência da mulher na relação (o poema se chama "Salvando o relacionamento"). Não dá pra negar um jeito feminino nisso. Os homens que escrevem a novela das oito fazem pesquisa, não são mulheres. Eu poderia escrever como um homem, mas não dá mais tempo de ser um homem. Acho essa discussão meio besta.

As mulheres se identificam muito mais com a minha poesia, sim. É visível. Este contato com platéia me disse isso. Sou supertímida para ler em público, mas me supero porque gosto de saber como vão reagir. E não me importo se reagirem mal. Gosto de ver como é ser lida. Ouço viagens, alucinações, raivas. Nem todo homem curte o que eu escrevo. Isso é identificação, sim. As mulheres se sentem próximas de mim. Não apenas se emocionam e dizem que se lembraram disto ou daquilo, como também se aproximam, vão me ver, me tocar, me abraçam. Coisa mais engraçada. A Ana Cláudia, esposa de um amigo meu, leu o Fresta e mandou me dizer: "Foi a imagem mais linda que já vi na vida". Era um poema em que o cara sai de casa depois de uma briga e a mulher acha que vai curtir a solidão numa boa. Só que a madrugada chega e ela sente falta dele. Percebe que o ama e tal e coisa. Daí a imagem da saudade é a dos poros sangrando. A moça passa a noite limpando esse sangue disperso e ardido que sai com as saudades. Ana Cláudia curtiu. Já deve ter sentido isso antes, mas não expressou o que era. Não é assim? Alguém disse que os poetas são as antenas da raça. Sei lá. Ser antena hoje está meio fora de moda, que nem ter fio. Os poetas hoje são wireless.

A Ivana Arruda Leite é minha preferida até hoje. Sempre me identifiquei demais com o texto dela. Curto, debochado, inteligente. Concisão me encanta demais (embora nem sempre pareça). Tenho preguiça de quem pensa que escreve bem e faz um trajeto absolutamente sofrido para dizer alguma coisa. Ivana é rápida. Além do mais, tenho uma admiração pela trajetória dela. A Cíntia também está na minha lista de preferências. Há uns anos, fiz uma resenha superelogiosa do livro dela, Arquitetura do arco-íris. É outra pegada, diferente da Ivana, por exemplo. Não conheço a Cíntia de conversar. Já estivemos nos mesmos lugares, para fazer as mesmas coisas etc., mas não rolou aproximação.

Umas coisas me deixam bastante tranqüila com essa coisa de literatura boa ou ruim: grande parte dessa trama toda é identificação com o texto, não é exatamente um "bom" ou "ruim" inerente ao texto. Outra parte é que as pessoas são livres para gostar ou não, ler e parar de ler. Isso está entre os direitos do leitor (só se fala em direito do autor...) no belíssimo livro do Daniel Pennac, Como um romance, publicado no Brasil faz tempo. Há uma ex-professora minha, a poeta Vera Casa Nova, que vive dizendo que minha poesia é singular, que não conhece ninguém com a minha dicção. Fico feliz demais, sinal de que pareço fazer alguma coisa usando a minha voz. Mas o barato mesmo é fazer as coisas, me dar o direito de escrever, sem pensar muito em literatura feminina, grupelhos literários ou modas formais.

4. E eu queria entrar em mais uma faceta sua, consolidada aqui no Digestivo (e no Estado de Minas), a de cronista. É engraçado porque eu achava que seus contos arrebentavam, mas você foi parando com eles e renascendo numa nova pele (se podemos assim dizer), com as crônicas. Eu já te falei isso e Leitores igualmente te falaram: você confere uma densidade às coisas simples; transforma os, aparentemente, menores problemas em questões cruciais da vida; e revela a grandeza, esquecida, de algumas passagens do dia-a-dia. Não consta para mim, no inventário das suas influências, que você tenha lido muito os nossos grandes cronistas, como o Rubem Braga, o Nélson Rodrigues, até o Machado de Assis — mas essa sua vocação se impôs mesmo assim. Como foi? Você seguiu deliberadamente por esse caminho ou a crônica foi crescendo, sozinha, dentro de você? Neste tempo todo que você não publicou em livro, acho que foi a maior cronista da nossa geração — e tenho orgulho de ter publicado grande parte dessa produção aqui, no Digestivo. Você ama, enfim, suas crônicas tanto quanto ama seus poemas e seus contos de antes?

É engraçado, Julio. De fato, eu achei meu lugar como cronista no Digestivo. Não tenho dúvidas disso. Não era cronista antes, embora arriscasse uns textos, e não serei depois. Há quase 6 anos estou aqui, quinzenalmente, e você sabe que não falho, não falto e não atraso. O leitor não sabe, vai saber agora. Meus textos ficam no setup meses. Às vezes as pessoas comentam o texto comigo e eu não sei do que elas estão falando. Tomara que isso não decepcione ninguém, mas preciso reler os textos no dia em que eles vão ao ar para saber o que responder quando chegarem comentários. De vez em quando, claro, os textos são mais datados, quando, por exemplo, escrevo para um especial ou sobre eventos, livros recém-lançados etc. Nem gosto muito dessas "encomendas" porque o texto perde sua atemporalidade. Morre um pouco mais rápido, entende? Então prefiro escrever sobre coisas sem tempo.

Essa intensidade com que tudo aparece nas crônicas é uma mistura de como eu realmente vejo com uma ficção sobre o que eu não vivi. Desejos, observação e manejo de linguagem. Não fui e não sou grande leitora de cronistas. Li o Drummond cronista várias vezes. Li pouco do Machado. Li bastante Rubem Braga, mais por obrigação escolar, mas não desabono essa experiência. Li quase nada do Nelson Rodrigues, apenas algumas peças (e acho chato ler peças, assim como vê-las).

Eu fui ajustando um jeito de escrever o que eu queria, de preferência evitando temas chatos, polêmicas baratas, discussões que estão na crista da onda e bate-bocas que causam profundo desgaste com gente que nem conheço direito. Minha autopromoção não era isso. Era justamente não fazer isso. Acho que o leitor não tem de ir a lugar algum, muito menos do Digestivo, com a mão no coldre, pronto para a briga. Escrever sobre polêmicas que passam no Jornal Nacional, discutir o que nem os peritos da Unicamp sabem direito, bater boca por conta de preferências muito pessoais... isso enche o saco. Vou falando de chicletes, manias, festas, gravidez etc. É claro que nem sempre isso passa sem discussão, mas a idéia é manter com o leitor uma conversa amigável.

Escrevo 5, 6 textos de uma vez e deixo na espera. Vocês, editores, vão decidindo o que fazer com eles, em que ordem etc. Rafa é um grande interlocutor. Aprendemos muito juntos. Ele faz perguntas difíceis e eu testo meus conhecimentos, pesquiso, divido com ele. Os leitores conversam comigo. Na medida do possível, respondo aos e-mails todos. Uma ou outra vez tive de ser grosseira porque vieram me dar cacetada de graça. Gente que entende meu texto como uma ofensa a qualquer coisa, joga pedra, vem com falta de educação, nervosinhos de plantão (curiosamente, em geral são mulheres), aí eu não deixo barato. A pessoa tem o direito de não me ler e não voltar nunca mais. O espaço que eu tenho para escrever é meu, poxa. E aqui não tem censura, certo, Julio? A relação é assimétrica mesmo, ora bolas. A internet conseguiu balançar isso, o jornalismo colaborativo, talvez, mas a relação autor/leitor, na absoluta maioria das interlocuções via texto, ainda é assimétrica.

Eu fico numa alegria danada em saber da sua admiração pela minha escrita, pela minha crônica. Certamente, é tudo made in Digestivo. Não escrevo crônica em mais lugar nenhum. Exclusividade total. E não pense que isso é fidelidade, Jui. É que o setup do Digestivo é muito aconchegante para mim. Não escrevo crônicas nem no meu computador! Você sabe disso? Não as tenho. Outro dia recolhi tudo porque o Carpinejar queria ler. Nessas migrações de servidor que o Digestivo faz, eu poderia simplesmente perder tudo. Escrevo direto no setup e confio ao Digestivo as idéias que me vêm. Vocês devem poder rastrear isso aí. Não sou cronista do Estado de Minas. Colaboro com alguma coisa, de vez em quando, especialmente com ensaios (em geral, sobre leitura e leitores), em um caderno chamado "Pensar", que circula aos sábados. Mas é coisa bissexta. Meu dia-a-dia é aqui.

5. Queria entrar em outra, talvez, polêmica, que, de tempos em tempos, ressurge aqui no Digestivo: a questão do ensino de literatura nas escolas. Você, para completar, sempre traz, como professora, um ponto de vista interessante, do "outro lado" — porque os reclamantes, em geral, só têm o ponto de vista do aluno. E é praxe jogar a culpa — pelos baixos índices de leitura do brasileiro — na escola, nas aulas de literatura, nos livros adotados etc. Então, queria que você falasse da sua experiência — afinal, o desinteresse da maioria dos alunos é grande, de muitos pais, também, e da sociedade, embriagada pelas imagens, igualmente, não ajuda. Você, ainda, escreve a respeito. No seu caso pessoal, eu sei que descobriu logo a biblioteca (e os poetas vivos!). Mas como é, por exemplo, com o Eduardo, seu filho? Acredita, outro exemplo, que os leitores on-line, da internet, podem ser melhores leitores do que os da nossa geração, formada pela televisão? E o Brasil — vai ser, um dia, um País de Leitores?

Esse assunto é espinhoso. É uma dessas polêmicas fáceis de que falei antes. Eu faço o possível para cumprir minha tarefa. Não estou falando só como cronista, falar de leitura etc. Estou dizendo que minha tarefa profissional, o que escolhi para fazer diariamente e que me dá meu sustento é a leitura, são as aulas de português, de texto etc. Julio, você pode fazer o melhor curso do mundo, com o melhor professor do mundo, e o máximo que ele pode oferecer a você é um vetor. Como assim? Aquilo que eu falava sobre conhecimento explícito e conhecimento tácito. Há coisas que precisamos "ler". As indicações de alguém podem não passar de "aulas chatas" ou podem ser muito mais do que isso. Quantas vezes o professor fala uma coisa meio boba em sala, nem dá bola pra o que disse, e um aluno vem agradecer, dizer coisas interessantes depois? É estranho, mas acontece. A gente não sabe quanto nem o quê vai ser "aproveitado" do que se diz ou se faz. A sala de aula não é exatamente o lugar mais bacana do mundo para que surjam a criatividade e a disposição para cumprir pautas. Fala sério! É uma situação controlada, fechada, na maioria das vezes isolada, em que as pessoas simulam (ou nem isso) ações ou temas que podem ser imediatamente aplicáveis ou não.

Produzir texto na escola é quase milagroso. Depois de fazer boas redações escolares, as pessoas deveriam estar aptas a escrever bem quase qualquer coisa, de tão adversa que é a situação. Mas não é assim que funciona. Se isso resolvesse, seria bom. Quando você vai escrever um relatório, uma carta, um poema, uma crônica pro Digestivo ou um artigo científico, passa um tempo investindo nisso, não é? Pensa, lê outra coisa, pega uma informação aqui ou ali, conversa com alguém, observa, documenta. A redação escolar vai a seco! Trabalhar nesse ambiente também não é fácil. Como é que as pessoas aprendem a escrever redações? Do jeito mais adverso possível. E muitas aprendem alguma coisa mesmo!

A sala de aula é complicada, mas faz parte de uma parcela altíssima das nossas vidas. Você passa mais tempo no colégio do que em casa, muitas vezes. É claro que estou falando de uma faixa da população que vai à escola (não interessa se boa ou ruim) e que faz isso por muitos anos. Há quem freqüente salas de aula por pouco tempo, lógico. Mas esse tempo vem aumentando, mesmo para populações menos favorecidas. Coisas boas e coisas ruins vão acontecer lá, inevitavelmente. Algumas serão contadas nas mesas de bar, outras, não. Muitas serão esquecidas.

As pessoas discutem se o gosto pela literatura é implacavelmente detonado pelos professores de português ou coisa que o valha. Discutem se o gosto pela redação surge na escola ou se é apesar dela. Mas isso não é privilégio da Literatura, ora bolas. O problema é que as pessoas não conseguem sair do clichê. Quer disciplina mais prejudicada do que a Matemática? Quanta gente tem histórias trágicas para contar sobre as aulas de cálculo? Eu mesma odiei Biologia quando tive de montar um herbário. Que chatice. Tive todas as chances do mundo de odiar Geografia e mais algumas de não aprender nada em Inglês. Cara, nada disso rolou desse jeito. Eu estava lá, vivendo aquele tempo de escola (que, ao fim e ao cabo, é bom pra caramba!), jogando bola, tocando violão na hora do recreio, convivendo com pessoas de quem eu gostava, que me ensinaram coisas legais e coisas erradas, convivendo com as regras da escola (uniforme, horários, sirene, disciplinário, supervisora, autoridades, provas, recuperação, calendário de festas etc.) e tudo isso é muito importante. Tudo isso é também a escola.

Se eu não gostei de José de Alencar foi porque não me identifiquei com ele. Não me lembro de me obrigarem a gostar. Me obrigaram a fazer trabalhos sobre ele, li para passar no vestibular, falei dele em seminários etc., mas isso aconteceu diversas vezes na minha vida, quando li documentos que não curti, para escrever relatórios profissionais que não me apeteciam. Não posso ter me traumatizado com tão pouco. As pessoas parecem ser sensíveis demais, não é mesmo? Isso me impressiona. O que será que se pode tirar de bom da escola se não for a convivência?

Ainda hoje eu lido com alunos de pós-graduação que reclamam das coisas mais ridículas que se possa imaginar. Certa vez, uma aluna adulta levou reclamação formal à coordenação de uma instituição privada para dizer que os alunos queriam "mimos", tipo ganhar ingressos de cinema (sugestão dela). Isso me atazana até hoje. O que será que faltou? Correr atrás das coisas? Você não gostar de alguma coisa (leite, Sprite, Machado de Assis ou Pantanal) não pode incomodar os outros tanto assim. Você não precisa é ficar propagando isso como se você estivesse com a razão, como se fosse uma questão de argumento.

A escola tem muitos problemas, claro. A igreja, os monastérios, as empresas de comunicação, as instituições financeiras, a Bolsa de Nova York, também. Não me meto a dar diagnósticos e prescrever tratamentos para a Bolsa e nem a aconselhar Silvio Santos. Mas todo mundo acha que resolve os problemas gravíssimos da escola com palpites ou com experiências de alunos de segundo grau. É engraçado demais. Serve para rir, ao menos. O professor de Literatura, na maioria das vezes, está às voltas com uma série de adversidades, a começar pela irrestrita má vontade de muitos alunos (e não é problema de geração internet ou de geração coca-cola). O aluno não é exatamente o salvador da escola.

Vou generalizar só para dar uma idéia da coisa, claro, não são todos assim, mas o aluno não coopera, não tem educação para ouvir alguém (nem mesmo outro colega), não quer ler, não quer escrever, não quer estar ali. Não importa se a escola é chique ou é uma birosca. Os pais do aluno não lêem um livro por ano, não querem comprar nenhuma das obras indicadas pela escola e depois vêm com papo-furado de "formação do gosto pela leitura". Qualquer pesquisa (séria, e elas existem) dá conta disso, gente.

A casa da gente faz uma diferença danada no que a gente é. A escola é uma outra casa, cheia de regras que o lar muitas vezes não tem. Na minha casa, meu pai era bravo e minha mãe era superorganizada. Éramos quatro pirralhos barulhentos. Para não perder o controle, ela nos fez escolher uma cor e nossos pertences eram sempre daquela cor. Um pequeno exército de crianças que precisavam ser educadas. Aprendemos regras, respeito, horários etc. A escola não nos parecia nenhuma excentricidade. Para muita gente, ela é. Ler não era uma esquisitice. Para muita gente, é.

A maioria dos professores merece respeito, é gente que investiu em uma carreira. Grande parte das críticas apocalípticas é um grande desrespeito. Talvez a desvalorização do docente no Brasil ajude a propagar também esse desrespeito.

Meu filho não sabe ler ainda. Não deste ler que a gente sabe, empregando o alfabeto e os sentidos. Ele já nasceu dono de uma biblioteca. Trabalhei em editora de livro infantil, ganhei muitos, então Dudu herdou tudo. Nunca forcei nada. Quer ler, leia. Mas ele me vê lendo desde que nasceu e o pai dele também vive de livro na mão. Leio deitada, antes de dormir. Ler sentada, em pé, de dia ou de noite — é parte normal do meu dia-a-dia. Escrevo diariamente, porque preciso, porque me obrigaram, porque me pediram, porque quero. Ele provavelmente terá essas coisas como comuns. Já o peguei vendo os desenhos de livrinhos da estante dele. Já tive de parar de ler porque ele insistia em "ler" as palavras do meu livro. Também já o peguei sentado no vaso vendo revistas enquanto fazia cocô. Ele sabe algumas práticas, conhecimento tácito. A escola vai interferir nisso, claro. Talvez, no entanto, nossa influência o deixe menos vulnerável a professores fracos ou à inexorável situação de ter de cumprir tarefas.

6. Ainda na sua faceta de professora, mestra e doutora — enfim, de estudiosa do assunto —, gostaria que falasse um pouco da sua pesquisa sobre os impactos da internet no ensino. Eu sou meio autodidata e, muitas vezes, tenho de me controlar porque, na Web, há tanta coisa, tanto material de qualidade, que é alto o risco da dispersão... E eu vejo, anualmente, o e-learning, o ensino à distância, crescendo, até como business. Por um lado, isso fortalece as instituições que já têm uma tradição no ensino — e que, agora, usam a internet como plataforma —, mas, por outro, estamos assistindo a uma explosão de cursos extra-acadêmicos, "cursos livres", novos cursos técnicos... Como você vê este momento: é bom ou é ruim para o ensino como um todo? E para os profissionais da área? Hoje existe mais compreensão do que é possível fazer com a internet? Ou muitos educadores ainda vêem a internet como um "inimigo" (como a televisão foi durante anos)?

Não sou especialista em educação à distância, então vou evitar ataques ou defesas. O que posso dizer é que fui aluna e fui "professora" em cursos à distância. Fiz meu mestrado trabalhando em uma empresa, de 8 às 18hs., como todo mundo. Precisei negociar arduamente com meus chefes uma tarde livre para cumprir os créditos. Os mestrados e doutorados são em horário comercial. Se não fossem, imagino que teríamos também uma indústria noturna de mestrados. Só que esses horários excluem muitos candidatos. Há certa lógica nisso: professores costumam ter horários mais flexíveis do que funcionários de empresas. No entanto, eu não era, ainda, professora profissional, vamos dizer assim. Havia feito licenciatura e bacharelado, estava legalmente apta a dar aulas, mas preferi, naquele momento, enveredar pela produção editorial.

Foi um aprendizado e tanto, mas eu gostava de estudar e confiava que fazer mestrado me abriria outras portas. Negociei, argumentei e depois de algum esforço e de escutar muitas promessas de ascensão na empresa, o chefe acabou liberando uma tarde. Não me lembro nem qual, se era segunda ou quarta. E era liberação mesmo, não precisava pagar em horário de almoço nem nada. Só que eu abri precedente. Depois de mim, alguns gatos pingados tentaram estudar sem tanto êxito quanto eu. Aproveitei o que pude naquelas tardes, mas não seria o suficiente para que eu cumprisse os créditos e defendesse a dissertação em 2 anos.

Foi então que corri atrás da educação à distância (EaD). A responsável por essa minha experiência foi a profa. dra. Vera Menezes. Precursora do uso de plataformas digitais para o ensino no Brasil, a profa. Vera oferecia, em 2001, disciplinas do mestrado por e-mail. Naquela época, não usávamos softwares ou plataformas específicas para isso. Ela dava tarefas barra pesada e tínhamos prazos exatos e rigorosos para cumprir. O que aconteceu foi que aprendi e produzi muito mais nessas disciplinas (fiz duas ou três com ela) do que nas presenciais (com algumas exceções).

As pessoas são ainda desconfiadas em relação à EaD. Não há investimento nisso de forma suficiente e responsável. Uma turma de disciplina à distância precisa ser pequena. O que as faculdades (por exemplo) fazem é colocar um professor (tutor) para trabalhar com turmas de 300 alunos! Às vezes muito mais do que isso. É absurdo. Embora muita gente não ache, EaD é muito mais trabalhoso (para quem cursa e para quem oferece o curso) do que aulas presenciais. Imagine um projeto de EaD em Redação. O professor precisa ler e "corrigir" 300 textos por semana! Sem prazo para enrolar, sem passar prioridades na frente, entende? O retorno precisa acontecer com urgência. Em plataformas digitais, você precisa escrever para aparecer. Se você não escreve, não participa. Se não participa, não existe. Tudo o que se diz é documentado. Ao final, você tem os textos das pessoas, os diálogos. O produto de uma sala de aula virtual é um texto. As pessoas brigam mais, se excedem mais, se escondem por trás de seus nicks e da ausência de um rosto. É engraçado demais. Você pode ser mal-interpretado com muito mais facilidade. A disciplina que você precisa ter para cumprir as tarefas é muito maior e não há como enrolar. O horário limite para entrega dos trabalhos é acusado nos e-mails ou na plataforma. A PUC Minas utiliza um sistema que controla tudo que o aluno faz na sua plataforma. Há salas de bate-papo, fóruns, ambientes para postagem de trabalhos, uma verdadeira "galeria" de trabalhos escolares.

Isso também tem muito a ver com estilos de aprendizagem. Eu, por exemplo, sempre fui uma aluna dispersa em aulas presenciais. Tenho aquele limite dos 10 minutos de atenção. Isso é uma constatação científica: a gente agüenta 10 minutos. Depois é esforço. E nunca me esforcei. Ainda mais diante daquelas aulas em que o professor lia transparências ou repetia o que estava escrito no livro (tem isso em qualquer lugar, público ou privado, chique ou ferrado). Eu me sentava perto da janela, que era pra ter o que olhar lá fora. Escrevi muito poema nos fundos dos cadernos. Gastava as folhas de trás para frente. Não copiava nada. Sempre aprendi muito mais lendo em casa. Lia loucamente. Sabia as teorias todas. E esse jeito me acompanhou na faculdade também. Há pessoas que preferem ouvir. Outras preferem copiar sem parar. Há quem tenha muito mais concentração em sala de aula do que lendo em casa. E aí a EaD funcionava bem para mim. Quantas vezes perdi minhas tardes de trabalho em salas de aula! Era uma lástima ficar ali sentada ouvindo o cara repetir o texto que eu havia lido enquanto meus colegas de trabalho se viravam na minha ausência. No fim das contas, a empresa quebrou três meses antes de minha defesa de dissertação. Ufa! Eu estava certa. Fiquei três meses vivendo com meu FGTS e, logo depois da defesa, uma grande universidade me contratou. Mas meu mestrado era fundamental para que isso acontecesse. Estudar não gasta espaço, como diria minha avó.

O que vejo é que as pessoas querem fazer EaD de qualquer jeito. As escolas-empresas pensam que vão economizar em recursos humanos e em espaço, fazem mal e porcamente aulas de disciplinas que consideram menos importantes do que outras. Falta de informação e, principalmente, de formação. É preciso entender como funciona a EaD. Não basta chamar um professor e dar a ele um login e uma senha para controlar 500 carinhas. Há alunos que preferem cursos à distância porque pensam que vão estudar menos. O negocio é ser bem-feito. Dos dois lados. Minha experiência como aluna foi muito bacana. No doutorado não fiz disciplinas à distância, mas participei de muitos fóruns. Recentemente, abri um simpósio virtual com uma conferência on-line. Faço parte de um grupo de estudos na Federal de Pernambuco. Isso tudo é muito bacana. As relações escolares são complexas de qualquer jeito. Presenciais ou virtuais, são cheias de variáveis.

Minha pesquisa é sobre a leitura. Minha preocupação com o leitor é eterna. A pergunta "o leitor lê melhor impresso ou digital" já virou clichê e me dá preguiça, mas grande parte dos estudos sérios que estão sendo realizados e defendidos, em vários níveis, querem discutir isso mesmo. No meu caso, defendi que leitor bom lê em qualquer lugar. Minha pesquisa tem pilares fundados na História Cultural, na Comunicação Social, na Computação, no Design e na Lingüística. Ao desenvolver habilidades X ou Y de leitura (cognitivas mesmo), o leitor desenvolve também certa pro-atividade em relação aos ambientes. Deparei com leitores que navegavam superbem e liam tudo errado. Enganam bem, entende? Assim como tive contato com maus navegadores, cheios de dificuldades na lida com as interfaces, mas que liam superbem. Estes davam um jeito de se virar. Penso que o fundamental é desenvolver bons leitores. Isso é plenamente possível se se partir de uma matriz de habilidades. É preciso investir de forma justa nas possibilidades de educação e compreender melhor o que pode ser a educação à distância.

7. E como é a sensação de ver nossos contemporâneos, escritores, caindo em provas de vestibular? Ou como é, você mesma, caindo no vestibular? No ano passado, a gente conversou, mais uma vez, daquele momento, no início dos anos 2000, quando um bando de gente nova, que queria fazer literatura, apareceu pela internet. Foi, mais ou menos, quando a gente se conheceu, não foi? Há alguns meses, aqui em São Paulo, você me falava da explosão da Geração 90 e, depois, da Geração 00 — como algumas pessoas mudaram, como outras continuaram a mesma coisa... Você arriscaria um balanço daquele "Big Bang"? Eu penso que, agora, estamos vivendo — mais do que nunca — o momento dos blogs, e dos blogueiros. Aí a literatura, a tradição da literatura (pelo menos), parece que não é tão importante para quem escreve. Aquela ânsia que o pessoal dos "2000 e poucos" tinha — em ser contista, poeta, romancista — passou, saiu de moda ou apenas está "dando um tempo"? Qual a sua opinião?

Cair no vestibular é engraçado. Há muitas lendas sobre escritores que fizeram provas sobre seus próprios livros e tomaram bomba. Há lendas sobre palestras de escritores vivos em cursinhos. O que rola é que os autores desautorizam as interpretações massificadas da indústria do vestibular. Algumas universidades não adotam mais livros de autores vivos. Isso evita polêmicas sobre questões, interpretações e politicagem. Imagine a pressão que sofrem as comissões permanentes de vestibulares? Muita gente gostaria de cair no vestibular. Não porque seja bacana ser lido por tanta gente, mas porque é a maior tiragem da sua carreira, provavelmente. A indústria do xérox também faz a festa. E as questões estragam a chance de o estudante ter contato com um escritor vivo. Mesmo assim, o vestibular faz circular bem a literatura. Bem ou mal, muita gente tem contato com certos autores nessa circunstância. Não é a melhor delas, mas pode servir para alguma coisa. Por que não? Se tudo dependesse das condições ideais, estaríamos muito mais ferrados neste país.

Lembro muito bem de conhecer um belo livro de Carlos Herculano Lopes por conta de um vestibular. Adorei o livro. Nem era meu vestibular ainda, mas fiquei curiosa com a obra naquela época, início dos anos 1990. Conheço muita gente que conheceu e se apaixonou por Paulo Leminski quando Distraídos venceremos foi indicado para um concurso, também na década de 1990. Foi por conta de um vestibular que li o Rubem Fonseca pela primeira vez, que soube da poesia de Adélia Prado, que comprei livros bons e ruins. Tive alguns textos que circularam em provas de vestibular e é engraçado. Já trabalhei em vestibular com texto da Verônica Mambrini e, agora, acaba de cair um da Pilar Fazito. O Digestivo impera por aqui. Mas cair no vestibular também é cansativo. Para escritores, é uma maratona. Chatíssimo escutar aquelas viagens de professores que mastigam tudo para os alunos. Quando eu dava aulas no ensino médio, detestava pegar turmas de terceiro ano. Os alunos ficam cegos, fanáticos, um saco. Imagine ficar o ano inteiro sendo tangido por uma lista de livros divulgada por uma universidade? Um porre.

Quando nós nos conhecemos, Jui, eu estava numa editora de livros jurídicos, mantinha o blog Estante de livros e tinha mais atividades na internet do que tenho hoje. Foi o início dos anos 2000. Ser blogueiro não significava muito. Era uma curtição. Foram 6 anos desde que a Estante surgiu. Para a velocidade da internet, até que demorou para o blog virar a bola da vez. Conheci quase todos os escritores daquela época e ainda tenho contato com alguns. Muita gente desistiu, outros viraram profissionais, alguns mudaram de vida, vários se apagaram pelo caminho. A minha Estante é anterior a muitos blogs que são conhecidos hoje, mas ela era muito menos pretensiosa do que vários deles. Eu ainda acho que escrever em blogs não é o suficiente. É complementar. Não escrevo poemas na internet, por exemplo. Ainda me dá a sensação de estar jogando trabalho numa imensa lata de lixo. As crônicas do Digestivo são um espaço privilegiado. A sensação é outra. Publicar um livro ainda é importante. Parece que isso coroa a produção de alguém. Não sei explicar, mas ainda é diferente.

8. Questão inevitável: o livro eletrônico. Uma das grandes fichas que está caindo agora — até em ficção, creio — é a de que publicar em papel não é mais o "ó do borogodó". Você, mais do que muita gente, atravessou a tempestade de lançamentos, depois a calmaria das baixas vendas, e pode falar "de cátedra". Quando eu disse, há alguns anos, que o candidato a escritor deveria formar uma audiência on-line primeiro, muita gente ficou revoltada — me acusando de tolher o direito dos novatos de publicar em papel. Enfim... Não te parece, também, mais lógico que a cadeia de produção de autores iniciantes deva circular, primordialmente, no meio eletrônico? Você acha, como eu, que vamos, inclusive, criar um novo mercado para esse formato? Uma nova literatura, talvez? Quando o pessoal vem choramingando, pra cima de mim, que o livro físico vai acabar e tal, eu lembro sempre daquela sua frase: "Mas, gente, o livro de papel é só mais um formato...".

O que eu disse logo atrás é que é diferente. Não disse que é melhor nem pior. Veja que isso é uma sensação. Eu comecei no papel e acho que foi importante. Nunca foi tão fácil (e tão barato, talvez) publicar em papel. Os processos de produção são verticais. A mesma pessoa pode ser uma editora inteira, sem muita especialização. As novas tecnologias permitiram fusões que Ford jamais aprovaria. Isso é bacana. Não acho lógica em nada disso. Não vejo qualquer regularidade nas carreiras literárias das pessoas. Mônica de Aquino, poeta aqui de BH, publicou seu primeiro livro de poemas sem grandes intróitos na internet. E mais: publicou por uma editora pequena que bancou totalmente o livro dela. Isso é raro, mas existe.

Formar público on-line não quer dizer muita coisa. Tenho muitos leitores virtuais, mas não sei quantos deles comprariam meu livro. Escrever na internet é, sem dúvida, uma vitrine. Mas não se pode, de qualquer forma, escrever qualquer coisa em qualquer lugar. Escrever no Digestivo, por exemplo, tem todo um enquadramento. É, como gostam de dizer os administradores, "valor agregado". Somos mais do que a soma das partes. Isso também rola no livro impresso. Uma crônica minha pode ser lida por 2000 pessoas na internet, mas não há qualquer garantia de que 2000 exemplares sejam vendidos do meu livro com as mesmas crônicas. Este é um projeto meu, inclusive, mas não sei até que ponto virtual e real terão contato. Se a meta é ser lido, a internet pode ser o melhor sistema de distribuição que há. Se a meta é ser lido com a posse do suporte, então a história é outra. É diferente publicar nos dois ambientes. Um não leva diretamente ao outro. Não há determinações lógicas nisso. É preciso fazer o que se tem vontade de fazer. Sem livro, nada do que me aconteceu teria acontecido. Ao menos não deste jeito.

9. E eu não poderia esquecer da sua experiência como editora. A mais significativa, a meu ver, foi com o Patife — que, depois, teve uma nova encarnação com o Jorge Rocha. Quando eu te encontrei, num jornal de Minas, você ainda editava uma publicação independente, em papel. Como foram essas experiências? Têm também as entrevistas que você fazia, com escritores contemporâneos seus, para a Estante de livros on-line... Muitos de nós — é interessante isso — igualmente nos tornamos agitadores culturais, por força das circunstâncias, porque havia uma multidão de talentos e ninguém estava organizando... O que esse lado, de editora, até de crítica e mesmo de jornalista (eu arriscaria), acrescentou a você? E como vê o papel da imprensa, tradicional, diante desses fenômenos todos? O que não passou pelas grandes editoras, para eles, passou batido? Dos seus primeiros livros para este último, o que mudou em termos de recepção crítica, tanto "oficialmente" quanto "extra-oficialmente" (pela internet)?

O Patife era um playground eletrônico. Eu e Lucas Junqueira (hoje programador da Ciclope) ficávamos imaginando coisas legais para fazer na internet. Isso foi em 2000. E ele programou um site em que colocávamos roteiros de histórias em quadrinhos, sem quadrinhos. O Pedro, meu amigo do Rio, fazia uns malabarismos no Photoshop e nós nos divertíamos com aquilo. Foi minha primeira experiência de comprar um domínio e tal. Mais tarde, o Jorge resolveu retomar. Eu fiquei de fora, porque estava focada em outras coisas. O Patife, com o Jorge, virou um site de literatura mesmo. Mudou tudo, o projeto editorial completo. Um grupo bem diferente do meu assumiu. Participei com um especial sobre o diabo, não me lembro mais. Só isso. Continuei pagando hospedagem etc. O que sempre me deixa com preguiça é isso. As pessoas querem brincar com as coisas, mas não querem assumir direito. Eu e Jorge pagávamos a conta e ninguém se manifestava sobre dividir isso. Encheu o saco, fui lá e detonei o Patife. Perdi o domínio, o nome era bom e tal, mas virei a página. O Patife passou também por uma transição, quando Ricardo Rabelo comprou a parte do Lucas, mas vivíamos tão ocupados que nunca saímos dos planos.

Quando conheci o blog, em 2001/2002, resolvi partir para uma empreitada mais simples. Aquele recurso dos comentários também era bacana. O principal é que era mais fácil de operar. Nunca fui entusiasta de programação. Não aprendo nada disso. Preciso sempre de parceiros. Foi ficando difícil de sustentar. Falo muito com o Jorge que só acredito em iniciativas particulares, solo mesmo. A Luciana Tonelli, minha amiga, deve ter uma opinião bem diferente da minha. Aqui em BH, há grupos grandes de artistas que promovem muitas coisas coletivas e elas dão certo. No papel, só para citar duas, a coleção Poesia Orbital, pela qual lancei meu primeiro livrinho, em 1997, e o jornal DezFaces, com 10 edições, entre 2006 e 2007. O pessoal se junta e trabalha pela produção. Dá certo. Não tive a sorte de encontrar uma turma assim. Toda vez que eu dependia de alguém para alguma coisa, tudo rolava numa velocidade completamente insuportável para mim.

Em 2002, banquei, junto com a designer Cristiane Linhares, um fanzine de papel chamado Logo Logos. Impressionante como foi fácil ganhar visibilidade aqui. Na época, me inspirei no fanzine do Reinaldo Damazio, o ZineQuaNon, que circulava em São Paulo. Eu e Cris fizemos sete números, papel A4 colorido, com direito a lançamento e matérias em jornais. Depois foi ficando difícil de novo. É fundamental que haja pessoas dispostas a organizar e apresentar a produção. Muita coisa acontece ao mesmo tempo, muita gente morrendo e muita gente nascendo. É preciso, também, ter certa dose de paciência e de generosidade. O esforço é seu, os espaços são criados com gasto de energia e de grana mesmo, mas quem usufrui não é você. Eu não faria um zine para publicar meus poemas. Isso não é lugar para autopromoção (era o que eu achava). Autopublicação soava esquisito em papel. Na internet, é a coisa mais banal do mundo. Veja como é diferente.

Eu criei um blog, o Estante, para entrevistar, resenhar e apresentar novos autores. Não era pra falar de mim. Com o tempo, fui perdendo o pique, queimando todos os cartuchos, e passei a publicar microcontos lá, de minha autoria. Logo depois, abandonei o blog. De repente isso tem mais a ver comigo do que com o meio de publicação. Acho um saco ficar vendendo meu peixe. Prefiro algo mais sutil. Mas vender o peixe dos outros também cansa. A imprensa tradicional continua lá, fazendo pior um pouco o que sempre fez. Copiando releases, trechos de orelhas de livros, remendando prefácios e trechos de sumários.

10. E você tem fãs... O que diria a eles (ou a elas)? A Ana E faria alguma coisa diferente, se começasse tudo de novo? Qual o peso da internet na sua carreira? Algum projeto não realizado ainda? O que você diz aos jovens escritores que te procuram, em sala de aula, nas noites de autógrafos, por e-mail? Eles estão começando em melhores condições (ou, de repente, mais perdidos) do que você? Será que aquela "glória literária", da época do Guimarães Rosa, não existe mais? A literatura pode vir a ocupar uma posição mais relevante na vida moderna? Ou a era do fragmentário vai permanecer durante muito tempo? Existe, efetivamente uma "carreira" de escritor no Brasil? Ou ele tem de se resguardar, como você se resguardou, com outras ocupações afins? Concluindo: todas essas questões, que parecem "de vida" ou "de morte", numa determinada fase, vão se acomodando à medida que o tempo passa — ou seja, não têm mesmo uma resposta definitiva, só aquela que a própria vivência traz?

Eu faria quase tudo de novo, do mesmo jeito. Houve infelicidades no meio deste caminho. Minha vida se misturou completamente com a internet. Também houve momentos de extrema confusão, quando me tornei um personagem. E houve momentos de felicidade. Mas é tudo tão cruzado que perdi a noção do que seria viver sem a Rede. Quero dizer isso sem deslumbramento, certo?

Para se ter uma idéia, conheci meu marido na internet por causa da literatura. Enquanto eu fazia aquele movimento do Patife, da Estante, lançava livro e dava entrevistas para sites, Jorge movia o Paralelos, publicava em revistas de papel e organizava exposição na Primavera dos Livros, no Rio. Foi lá que nos conhecemos pessoalmente, mas já nos conhecíamos fazia tempo. Tudo é muito misturado mesmo. Certa vez, quando nos reunimos (aqueles escritores todos) no Itaú Cultural, tivemos aquela sensação de déjà-vu terrível. Nunca te vi, sempre te amei. Te odeio, mas nem te conheço. O mais grave era que conhecíamos nossos personagens. Encarnávamos figuras que não éramos direito. Ou éramos, não sei. Gastei energia demais naquela época. Alguma parte dela foi aproveitada, sem dúvida. Minha "carreira" foi bastante empurrada pela internet.

Mas veja: jovens escritores não me procuram muito. Pessoalmente, intimido um pouco as pessoas. Dizem que tenho jeito de séria, de pouco acessível. E não é verdade. O leitor constrói um personagem difícil de derrubar. Meus alunos me conhecem muito mais do que meus leitores, claro. De vez em quando, raramente mesmo, alguém me pede para ler alguma coisa, dar opinião, pergunta o que eu acho de publicar livro etc. Eu sou sempre evasiva.

Eu acho, sempre, que as pessoas devem fazer o que quiserem. Não há qualquer chance de existir uma receita. Acho que a turma de hoje começa em condições mais complexas do que a minha geração. É mais difícil se sobressair no meio de tanta coisa e de tanta coisa fake. Guimarães Rosa também não teve as melhores condições do mundo. Quando ele, finalmente, publicou, a crítica parcialmente detonou o texto dele. Não há fortuna crítica sobre mim. Não fiz tanta diferença assim, infelizmente. Mas quem é que faz? Tudo o que li a meu respeito é positivo, ao menos simpático. Tenho certo jogo de cintura com os leitores da coluna. Os leitores da minha poesia têm sido receptivos. Alguns jornalistas publicaram textos sobre minha poesia e enfatizaram o toque de ironia e de humor. Gosto de disso.

O mais bacana mesmo é o leitor chegar perto para dizer deste ou daquele poema, o escolhido. Isso é que me arrepia. Pessoas que eu não conheço se aproximam para dizer que curtiram isto ou aquilo, que riem, que choram, que se divertem. Muito mais bacana do que muitas resenhas juntas. Mas a resenha também é bacana.

Meu amigo José Eduardo Gonçalves tem certeza de que a literatura não tem mais importância no mundo contemporâneo. Os motivos disso, para ele, têm a ver com a competição entre tantas coisas mais rápidas e mais interessantes. Sei lá. A literatura sempre teve uma importância muito sutil, mas muito forte. Alguns livros mudaram a história de países inteiros. Sem grande estardalhaço. Acho que a literatura continua acontecendo com força.

Carreira de escritor? Para poucos. Nunca nem tentei, sequer pensei nisso. E não porque tivesse medo de morrer de fome. Não morreria. Conheço, de verdade, quem viva de textos, da literatura, não sei. Tem jeito. Milton César Pontes vive dos livros que publica e das declamações em mesas de bar. Ricardo Aleixo dá a volta ao mundo com sua poesia. Há quem receba bolsas (o mecenato moderno), estímulo financeiro etc. Nunca pensei nisso. O motivo é simples: sou apaixonada pela minha profissão. Sou professora fanática, muito mais do que poeta convicta. Sou convicta das duas coisas, sendo que são parentas, meio irmãs, se ajudam sempre.

Na época do evento no Itaú, estávamos quase todos os escritores no mesmo hotel. Na hora de preencher as fichas do check-in, Ricardo Aleixo foi o único que escreveu "escritor" no campo de profissão. E ficou bravo com a gente que escrevia outras coisas. Escrevi "professora", sem culpa. O que me sustenta é minha carreira acadêmica. Dou aulas numa das mais respeitadas instituições de ensino técnico, tecnológico e superior do Brasil. Não tenho do que reclamar. Sou escritora por absoluto amor à língua, que gosto de experimentar e renovar. Quando consigo, corro para contar pros meus alunos. Vivo dessas duas experiências misturadas, sem a menor culpa de não distingui-las. Não sei se sou uma professora mais completa ou uma poeta menos falha. O que me interessa mesmo está nas duas facetas: a linguagem.

Para ir além
Mais Ana Elisa Ribeiro

Julio Daio Borges
São Paulo, 4/8/2008

 

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