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Segunda-feira, 3/7/2006 Ruy Castro Julio Daio Borges Ruy Castro, no Leblon, em foto de Marcio Scavone Ruy Castro é um dos maiores biógrafos brasileiros de todos os tempos. Já contou a história da bossa nova, em Chega de Saudade (1990), a vida de Nélson Rodrigues, em O anjo pornográfico (1992), a de Garrincha, em Estrela solitária (1995), e, recentemente, a de Carmen Miranda, em Carmen (2005). Contou também uma breve história do Rio, em Carnaval no fogo (2003), e montou sua própria enciclopédia de Ipanema, em Ela é carioca (1999). Fora obras de ficção, humor, antologias e traduções. Ruy Castro é de 1948 e nasceu em Caratinga, Minas Gerais, embora reconheça: “Sou tão mineiro quanto o Milton Nascimento é carioca”. Na imprensa desde 1967, passou, segundo seu curriculum vitae, por todos os grandes veículos do Rio e de São Paulo. Morou no célebre Solar da Fossa e pertenceu à mítica Geração Paissandu, mas – ao contrário do que foi sugerido aqui – não tem planos de escrever um livro de memórias: “Estava muito ocupado vivendo para prestar atenção”. Acredita que o que faz um grande repórter – o que ele também é, no fundo – é o traquejo de rua, e confessa: “Aproveitei o que pude enquanto deu. Agora estou mais calmo”. Ruy Castro é, hoje, um dos principais autores da editora Companhia das Letras (um dos que têm mais obras em catálogo). Nesta Entrevista, adianta seu próximo lançamento: Um filme é para sempre, uma seleção de artigos seus para imprensa, com organização de Heloisa Seixas. Ruy – afastado pelo momento da atividade de biógrafo – ainda indica Sérgio Augusto para escrever uma história do Cinema Novo, afirma que a revista Manchete foi, para ele, uma escola no início dos anos 70, e encerra com uma homenagem ao sexo oposto: “Aprendi com todo mundo que conheci e com quem conversei. Principalmente com as mulheres”. – JDB 1. Ruy, em matéria de detalhes, sei que você já falou quase tudo sobre Carmen Miranda, então vamos nos concentrar nos aspectos gerais de Carmen. É minha impressão ou é a sua biografia mais alentada em menos tempo? Bater esses dois recordes foi intencional? É, aliás, por isso que você declarou, em algum momento do processo, que seria sua última biografia? O que Carmen Miranda tem de especial e o que Carmen teve de especial? É a minha biografia mais alentada, mas não é a que levou menos tempo. É a que levou mais. Tive a idéia em dezembro de 2000, logo depois de soltar o romance Bilac vê estrelas, e comecei imediatamente a reunir material sobre ela, ao mesmo tempo em que trabalhava em outros livros, principalmente Carnaval no fogo. E, ao fazer isto, descobri que já tinha muito material – quase todos os discos, tanto brasileiros quanto americanos, vários filmes e uma boa quantidade de revistas de época e recortes. Na verdade, era como se, sem saber, eu já viesse me preparando há muito tempo para mergulhar em Carmen – e só então ela me “informou” de que estava me esperando... Outro motivo foi o fato de que, de certa maneira, sempre convivi com Carmen. Meu pai, nascido em 1910, foi contemporâneo dela no Rio e pegou os ecos de sua presença – foi morar na Lapa pouco depois que ela se mudou de lá. Desde garoto ouvi-o contar histórias sobre Carmen. Ele gostava de cantar o repertório dela, pelo menos os principais sucessos, e me dizia que, nos anos 30, a assistira ao vivo na rádio Mayrink Veiga. Muito depois, na casa do poeta José Lino Grünewald, outro grande fã, ouvi algumas das gravações mais recherchées de Carmen. José Lino a achava a maior cantora da música brasileira em todos os tempos. E, como ele, outros grandes conhecedores – gente que realmente ouviu todos os discos –, como Jota Efegê, Ary Vasconcellos, Jairo Severiano, Tinhorão, Sérgio Cabral, etc. No começo de 2003, assim que entreguei Carnaval no fogo à editora, mergulhei em Carmen. Donde custou-me cerca de cinco anos, dos quais quase três em regime exclusivo. 2. Também foi especial, pelo visto, a recepção ao livro, tanto em matéria de crítica quanto de público. A ponto de você declarar, já no início do ano, que poderia voltar a biografar – reconsiderando sua primeira decisão. Você confirma essa intenção? Algum projeto em mente, algum detalhe que possa revelar? Escolhido o objetivo (ou tema), digamos assim, qual é o próximo passo? Por onde você começa? Não me lembro de ter reconsiderado essa decisão. Não tenho ninguém biografável em mente, não gostaria de voltar tão cedo ao gênero e há vários outros formatos de livro que pretendo explorar. 3. Mas, supondo que, um dia, você volte à biografia... Até onde você vai e quando decide parar? Sei que grande parte do seu método se baseia em entrevistas (exaustivas entrevistas), mas quando você pára, por exemplo, de entrevistar? Porque, aparentemente, pode ser um trabalho sem fim... ou não? E, pelo que você contou no Roda Vida, é igualmente fascinante... (Conversar com as pessoas, etc.) Setenta por cento do trabalho, pelo menos, se baseia nas entrevistas, e elas têm que ser feitas até que eu fique satisfeito. Mesmo quando declaro encerrada a temporada de entrevistas e acho que já está na hora de começar a escrever, sempre aparecem dúvidas de última hora, que às vezes posso resolver por telefone. Acontece também, como foi o caso do Estrela solitária, que um documento importante que eu estava procurando (e que já desistira de achar) apareça de repente, depois do livro fechado, e me faça reabrir. Esse documento era um relatório oficial de todas as internações do Garrincha em clínicas e hospitais nos seus dois últimos anos de vida – depois de um ano inteiro procurando-o em vão, fui levado a acreditar que já não existia nenhuma cópia e me conformara com isto. Assim, escrevi usando as informações que tinha, e que já eram muitas. Foi então que o documento apareceu. De qualquer maneira, é importante estabelecer um limite para o trabalho – se eu pudesse, continuaria entrevistando e convivendo com o universo do meu biografado pela vida inteira. Acho um privilégio ter esse contato com aquelas pessoas. 4. Agora me fale um pouco das origens do seu trabalho de biógrafo... Você já afirmou que os temas surgem assim sem planejamento, mas eu queria saber de você: planejava ser biógrafo? Ou foi um convite do Luiz Schwarcz que, no final da década de 80, você decidiu aceitar? Quero dizer: o nascimento (e o estabelecimento) da editora Companhia das Letras coincide com o desenvolvimento da sua “carreira” de biógrafo? Ou não tem nada a ver uma coisa com a outra (você faria do mesmo jeito)? Nunca planejei ser biógrafo, nem ninguém me convidou a isto. Foram apenas as circunstâncias. Um dia tive a idéia de escrever uma história da Bossa Nova; pouco depois, concluí que tinha grande curiosidade sobre a vida do Nelson Rodrigues – foi assim que começou. Tive sorte de sugerir essas idéias a um editor inteligente e que confiou em mim, como o Luiz Schwarcz. Aliás, eu já o conhecia desde o tempo em que ele era da Brasiliense. Foi também uma feliz coincidência, a de eu ter, como escritor, começado ao mesmo tempo que a Companhia das Letras. Hoje sou o autor mais antigo e o com mais títulos publicados na editora. 5. Uma coisa que já te perguntei, mas que gostaria que você respondesse aqui... Quem foram os seus modelos? Existiram, a rigor, biógrafos brasileiros que inspiraram, sei lá, você e o Fernando Morais? Sei que você não pode responder por ele... mas vocês tiveram de buscar essas referências fora do Brasil? Pergunto porque é óbvio que hoje existe um “jeito” de biografar seu (e um jeito de biografar do Fernando Morais)... e eu gostaria de saber de onde isso veio. Imagino que não surgiu do nada; e imagino que aquela sua biblioteca só de livros sobre cinema e música popular tem muito a ver com essa questão, ou não? O Brasil sempre teve bons biógrafos, e alguns dos mais importantes foram o Otavio Tarquínio de Souza, que biografou todo o Império, e o meu amigo R. Magalhães Jr., que biografou a República Velha. Mas não posso dizer que tenham me inspirado. Quem eu gostava de ler era a americana Barbara Tuchman, autora de Os canhões de agosto, mas ela era mais historiadora do que biógrafa. Tenho muitos livros sobre cinema e música popular, mas tenho também estantes inteiras de literatura, teatro, política, história, humor, dicionários e livros sobre cidades. A maior coleção, no entanto, é a de livros que têm o Rio como cenário ou como personagem – talvez uns 4 mil. 6. Posso estar falando bobagem agora, mas não acha interessante que você e o Fernando tenham vindo de Minas Gerais? E que, digamos, um dos maiores poetas do século XX tenha vindo também de Minas (Carlos Drummond de Andrade)? E um dos maiores romancistas (Guimarães Rosa)? E, ainda, um dos maiores cronistas (Fernando Sabino)? Todos, com exceção de Fernando Morais, moraram no Rio (sei que é um dos seus temas preferidos...)? Me diga, por favor, se isso faz sentido. Os mineiros realmente levam jeito para escrever, mas os cariocas, os nordestinos e outros, também. Acho formidável ter nascido em Minas Gerais, mas, na verdade, sou tão mineiro quanto o Milton Nascimento é carioca (ele nasceu em São Cristóvão, sabia?). Fui gerado na Lapa e deixei de nascer nela por uma questão de meses – meu pai, que morou na Lapa de 1929 a 1947, atendeu a um convite de um cunhado para dirigir uma loja em Caratinga, MG, e se mudou para lá com minha mãe no segundo semestre daquele ano. Nasci em fevereiro de 1948 e, nos anos seguintes, tive uma bela infância, metade mineira, metade carioca – minhas lembranças mais remotas têm tanto a ver com jogar pelada à beira do rio em Caratinga, MG, quanto ir à praia do Flamengo com minhas primas, no Rio. Aliás, peguei a Praia do Flamengo no tempo da antiga amurada, antes do aterro, e a praia se limitava a uma faixa de areia em frente à rua Barão do Flamengo, onde moravam minhas tias. Peguei também o ponto final dos bondes, no Tabuleiro da Baiana, e todo o ambiente da Lapa dos anos 50, onde morava uma outra tia minha, irmã de meu pai. O Rio é a cidade de todos os brasileiros e não distingue seus habitantes pela origem – todos aqui, sejam portugueses, italianos, japoneses, gaúchos ou nordestinos, se tornam cariocas. 7. Voltando aos temas, eu escrevi que parece haver uma amarração na sua obra de biógrafo, embora você insista que previamente não houve... Carmen e Chega de saudade na música, Nelson no teatro, Garrincha no futebol... Fora os ensaios históricos e culturais sobre o Rio (Carnaval no fogo e Ela é carioca). Você acha que está faltando algum tópico a esse painel todo? Eu já cobrei do Sérgio Augusto, agora cobro de você: que tal uma “biografia” do Cinema Novo? Ou de Leila Diniz, talvez? Não acha que, no fim das contas, você escreveu “pouco” sobre a sua própria geração? Um livro de memórias, mais pra frente, quem sabe? Não houve nenhum planejamento a priori nesses temas – eles foram surgindo à medida que foram me ocorrendo. O que há em comum entre eles é que João Gilberto, Nelson, Garrincha, Carmen e a maioria dos personagens de Ela é carioca, todos foram ou são grandes intuitivos. Aliás, escrevi longamente sobre a Leila em Ela é carioca. Não me ocorre neste momento nenhum tópico em falta, e também acho que Sérgio Augusto seria ideal para contar a história do Cinema Novo. Quanto a escrever sobre a minha geração, acho meio difícil, porque não sei se a conheço muito bem – estava muito ocupado vivendo para prestar atenção nela... Em 1968, por exemplo, aos 20 anos, eu trabalhava no Correio da Manhã, estudava na Faculdade Nacional de Filosofia, morava no Solar da Fossa e pertencia à Geração Paissandu – só isso já me tomava todo o tempo. 8. É inevitável entrar na sua formação... Fora esse background de entrevistas – mais notadamente na Playboy –, acha que alguma outra coisa foi fundamental para a sua carreira de biógrafo? Por exemplo, o convívio com as feras do Correio da Manhã? A revista Diners, com Paulo Francis? A Fairplay, que você comandou? O Pasquim? Digo isso porque depois na Folha e no Estadão, você já era o Ruy Castro que todos conhecemos, ou não? Sim, tudo isso e mais alguma coisa. Fui redator da Manchete numa grande época, aos 22 anos, no começo dos anos 70, e isso foi uma escola – nunca houve no Brasil uma revista semanal melhor. Fui editor da edição brasileira de Seleções em Portugal, pouco depois, e, por incrível que pareça, isso também foi uma escola. Fui o primeiro editor da revista Domingo, do Jornal do Brasil, escrevi sketches de humor para a TV Globo, fiz rádio, propaganda e até disco infantil. Tudo foi importante na minha formação. Mas o importante mesmo foi ter tido, desde jovem, um grande traquejo de rua. Freqüentei a noite, conheci os bares de todas as cidades por onde andei e aprontei o que pude enquanto deu. Agora estou mais calmo. 9. Sei que é uma questão muito ampla, mas o que mudou desde a primeira biografia até a última? Você acha, por exemplo, que se escrevesse Chega de saudade agora, faria muito melhor? Ou o método já era aquele e não haveria, hoje, grandes diferenças? Você é muito crítico em relação à sua produção? Relê o Ruy Castro? Se relê, gosta? O que acha? Acho que houve uma evolução de livro para livro – Chega de saudade, sem dúvida, ficaria muito melhor se feito hoje. Mas isso é só uma impressão, porque não fico me relendo e me torturando por não ter feito assim ou assado – em cada livro, faço o melhor que posso. Não, não gosto de me reler. Há um livro meu saindo do forno, agora em setembro, pela Companhia das Letras, Um filme é para sempre, com artigos meus sobre cinema publicados em jornais e revistas nos últimos 20 anos. Mas só vai sair porque a Heloisa Seixas, minha mulher, insistiu em ler esses artigos, escolhê-los e colocá-los em certa ordem. Só a partir daí é que me dispus a relê-los e meter a caneta. 10. O biógrafo influenciou o jornalista? Pessoalmente, tendo a achar seus textos cada vez mais fluidos, tanto nos livros quanto na imprensa... Como chegou a esse estilo? Alguma dica para quem quer seguir seus passos? Ainda se fazem biógrafos como antigamente? Ou não se fazem mais? Alguma mensagem especial para os biógrafos do futuro? O biógrafo só pode ter influenciado o jornalista no sentido de que, pelo fato de os livros me tomarem muito tempo, tenho sido obrigado a me espremer para continuar colaborando na imprensa. Isso que se chama de “estilo” é a soma de todas as influências que a pessoa já teve. No meu caso, o que não faltaram foram influências. Apenas entre os brasileiros que li muito e admiro, eu citaria Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Millôr, Cony, Paulo Francis, Ivan Lessa, Telmo Martino, José Lino Grünewald, Moniz Vianna, Sérgio Augusto – ou seja, os suspeitos de sempre. Conheci todos, fui ou sou amigo de vários e trabalhei com a maioria deles. Aprendi muito também com Justino Martins, ex-diretor de Manchete, já falecido. Na verdade, aprendi com todo mundo que conheci ou com quem conversei. Principalmente com as mulheres. Para ir além Julio Daio Borges |
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