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Segunda-feira, 6/12/2010
João Pereira Coutinho
Fabio Silvestre Cardoso

Natural da cidade do Porto, em Portugal, João Pereira Coutinho é escritor, crítico cultural e doutor em Ciência Política pela Universidade Católica Portuguesa, instituição para a qual leciona como professor convidado. Para além dessa atividade acadêmica, Coutinho escreve para uma série de publicações, dentre as quais cabe destacar o diário Correio da Manhã, maior jornal português, e a Folha de S.Paulo, onde assina uma coluna semanal, sempre às terças-feiras.

Coutinho também já publicou, em Portugal, o livro
Jaime e outros bichos (1997), e a coletânea de crônicas Vida Independente (2003). Em 2009, saiu pela editora Record o volume Avenida Paulista, no qual reuniu seus textos publicados para a Folha de S.Paulo e para a FolhaOnline (agora, Folha.com). Sobre seu estilo, embora o autor afirme que seus textos sejam "as crônicas que eu gostaria de ler", é possível distanciá-las da tradicional crônica brejeira de costumes, simplesmente pelo fato de Coutinho pertencer a uma linhagem mais intelectualizada de prosadores de imprensa, mais próximo de um Paulo Francis do que de um Rubem Braga. Em certa medida, o conteúdo subverte o formato, ainda que ele adote uma postura "acima do humor e abaixo do ensaio", conforme suas palavras.

Na entrevista a seguir, além de discorrer sobre seu trabalho como crítico cultural, Coutinho trata a respeito de sua disposição conservadora: "começa por ser uma forma de estar no mundo e de nos relacionarmos com o mundo que tende a privilegiar o familiar e o tentado ao desconhecido e ao nunca experimentado", citando uma de suas referências favoritas, o pensador Michael Oakeshott. Ademais, o cronista discorda do embate entre direita e esquerda na contemporaneidade, indicando que o mapa político, hoje em dia, está mais para utópicos e anti-utópicos. O autor comenta, ainda, sobre suas influências intelectuais, rechaçando, de cara, a presença de Eça de Queirós: "É uma influência maligna porque ele próprio já era uma cópia e um pastiche", dispara.

"Naturalmente que seria mais fácil ser um progressista na imprensa ou nas letras", afirma Coutinho, sem temer essa ou àquela patrulha ideológica. Em vez disso, o escritor prefere seguir um caminho singular: "trato os leitores como adultos". Leia abaixo a entrevista completa com João Pereira Coutinho ― FSC.


(Foi preservada a grafia do entrevistado, em português de Portugal pré-acordo ortográfico.)

1. Quais são as suas principais influências literárias e intelectuais? Em algumas entrevistas, assim como em artigos, o senhor já mencionou o pensador Isaiah Berlin como referência. Quais outros nomes fazem a cabeça de João Pereira Coutinho como autor e como leitor?

Fazem-me essa pergunta várias vezes. Respondo sempre coisas diferentes, o que significa que eu sou um produto de uma imensa salada de autores, pensadores, puros estetas. A resposta honesta seria: não sei. Li tudo o que podia, e até mais do que deveria, durante os meus anos de formação. E isso deixa as suas marcas. Devo muito ao jornalismo anglo-americano e brasileiro, sem dúvida, que me permitiram o que de mais difícil existe para um português: livrar-se da influência oitocentista e queirosiana. Eça de Queirós é um vírus que arruinou e arruina vários estilos ao convidar à cópia e ao pastiche. É uma influência maligna porque ele próprio já era uma cópia e um pastiche, para além de um terrível provinciano. Li todo o Eça e meu trabalho seguinte foi demolir todo o Eça. Ter conseguido essa proeza é o meu Nobel pessoal.

Isaiah Berlin foi meu tema de doutorado. É um filósofo manque, sem a profundidade de outros contemporâneos, como Michael Oakeshott ou Leo Strauss. Mas a sua crítica anti-utópica, a forma como ele explicou, histórica e conceptualmente, o fracasso das utopias, é uma das maiores proezas filosóficas do século XX. Esse lado de Berlin interessa-me muito mais do que o seu liberalismo e o seu pluralismo ― e contribuiu decisivamente para reforçar, com elementos teóricos mais sólidos, o meu pensamento estruturalmente anti-utópico.

2. Uma parcela de seus leitores costuma associá-lo ao pensamento conservador. De que maneira essa associação é prejudicial ao seu trabalho como articulista e intelectual? O senhor acredita que esse enquadramento tem como objetivo desautorizar seus argumentos no debate de ideias, posto que ser conservador, hoje em dia, significa confrontar o consenso progressista de boa parte da intelligentsia?

Nunca penso nisso, prova definitiva de que o conservadorismo, antes de ser "ideologia", é sobretudo uma "disposição", como dizia o supracitado Oakeshott. Começa por ser uma forma de estar no mundo e de nos relacionarmos com o mundo que tende a privilegiar o familiar e o tentado ao desconhecido e ao nunca experimentado, para continuar a citar Oakeshott. Se sou um conservador, como dizem, creio que é por verem essa "disposição" em mim, e não tenho como negar: sou culpado mesmo. Sou culpado de ter uma visão céptica sobre a bondade da natureza humana; sou culpado por ter um certo respeito pelas tradições úteis e benignas que sobreviveram aos sucessivos testes do tempo; sou culpado por preferir um governo limitado pela lei que não interfira nas condutas individuais; sou culpado de ser um pluralista, ou seja, de não acreditar na existência de um único padrão explicativo que reduza a complexidade do mundo a uma cartilha; e sou culpado de ter uma costela libertária no meu conservadorismo: exceptuando matérias de vida ou morte (como o aborto e a eutanásia), creio que os indivíduos devem ser livres para perseguiram os seus fins de vida, sem um Estado moralista pronto a "orientá-los" ou "puni-los", o que explica a minha total indiferença perante temas como droga ou prostituição.

Naturalmente que seria mais fácil ser um progressista na imprensa ou nas letras: já teria vencido vários prémios e, quem sabe, já teria lugar reservado numa qualquer Academia. Mas não posso violentar a minha "disposição", a minha natureza, acreditando nos mantras infantis de algum pensamento progressista, que confunde a política com outras áreas de actividade. Eis o erro central do pensamento progressista: acreditar que o "progresso" e a "criatividade" que existem noutras áreas da experiência humana podem ser transplantados para a política. Não podem. A política lida com a vida de seres humanos, ou seja, sobre a vida contingente desses seres humanos em colectividade. Gosto muito de "progresso" nas ciências; gosto muito de "criatividade" nas artes; mas, em política, quero humildade e prudência. Os seres humanos, ao contrário do que acreditava Hitler ou Stálin, não são meras estatísticas que podemos manipular como um pintor manipula as tintas na sua tela.

3. A propósito da questão anterior, recentemente, o escritor peruano Mario Vargas Llosa afirmou em entrevista que, no embate intelectual, a esquerda tem hegemonia em relação à direita. O senhor ainda considera que esse embate (direita vs. esquerda) permanece no século XXI?

Depende do que entendemos por esquerda e direita, termos que começaram por ter uma dimensão meramente espacial durante a Revolução Francesa, i.e., a aristocracia estava à direita do rei, o povo à esquerda etc. De que lado eu estaria? A pergunta só serve como exercício fútil, mas a resposta é ainda mais fútil: não sei. Os crimes e as desumanidades dos revolucionários, sobretudo na fase posterior do Terror, provocam-me repugnância extrema. Mas a monarquia corrupta de Louis XVI não merecia sobreviver. Creio que, em 1789, seria um reformista, não um revolucionário, o que significa que provavelmente seria devorado pelos jacobinos.

Hoje, talvez seja mais útil dividir o mapa político em utópicos e anti-utópicos. E é possível encontrar ambos na esquerda ou na direita. Bush, tido como direitista, era manifestamente um utópico, como grande parte dos "neoconservadores". O referido Isaiah Berlin, que se considerava um homem de esquerda, era um anti-utópico.

4. Como analista político, o senhor avalia que existe relação entre os valores da esquerda e o discurso autoritário? E o pensamento de direita, em tese, seria de fato menos afeito à ilustração? Na sua avaliação, essa dicotomia faz algum sentido ou é mera caricatura?

É mera caricatura. A direita é menos afeita à ilustração? A história do modernismo, no século XX, é feita por elitistas de direita, como Pound ou Eliot. A própria noção de "alta cultura" está sempre associada a um pensamento claramente elitista ― ou, se preferir, não-igualitário. O mesmo acontece com a esquerda: Orwell, um dos grandes nomes da esquerda inglesa, foi provavelmente o mais anti-autoritário dos intelectuais e alguém que percebeu uma coisa certíssima: que o autoritarismo é intolerável; mas mais intolerável são aqueles que se lhe submetem (uma grande verdade).

Claro que, em termos puramente conceptuais, é possível vislumbrar uma relação entre "idealismo" (uma qualidade típica da esquerda) e "autoritarismo", na medida em que existe sempre aquele momento fatal em que o "idealismo" não basta; é preciso impor esse idealismo às massas desavindas. Ou, como dizia Dostoiévski sobre a Revolução Francesa, a trilogia "liberdade, igualdade, fraternidade" estava incompleta; era necessário acrescentar: "liberdade, igualdade, fraternidade ― ou a guilhotina!". Nesse sentido, a esquerda é claramente monista e o monismo tem os seus perigos. Mas existem monistas autoritários em todos os campos.

5. Qual o seu posicionamento acerca do multiculturalismo, que, de certa forma, exerce bastante influência no discurso das humanidades, sobretudo na academia? É possível a manutenção da diversidade cultural sem desembocar no discurso do politicamente correto?

Penso que existe uma distinção entre multiculturalismo e sociedade multicultural. A segunda é um facto: basta caminhar por qualquer capital europeia e ver a multiplicidade de gente, arte, gastronomia ― uma diversidade que, pessoalmente, me encanta. Outra coisa é um paradigma normativo segundo o qual todas as culturas humanas têm igual estatuto, importância e dignidade ― um pensamento que, no limite, colocaria no mesmo patamar a Inglaterra de Churchill e a Alemanha de Hitler. Não acredito nisso: existem culturas intrinsecamente desumanas; uma cultura que apedreja mulheres adúlteras ou enforca homossexuais é uma cultura bárbara; uma cultura que extermina judeus, ciganos ou poloneses é uma cultura bárbara. E, dentro das sociedades ocidentais, imigrantes que pretendem instituir a sharia, que fazem apelos ao martírio e que cometem "crimes de honra" ou reclamam o direito a "casamentos forçados", peço desculpa, são bárbaros. Não apenas no sentido próprio do termo, ou seja, "estranhos"; são bárbaros no sentido universal porque violam, e violam grosseiramente, a natureza humana. Como dizia o bardo, o sangue tem a mesma cor, seja no Brasil, em Portugal ― ou no Irã.

6. Sobre seus textos, é correto afirmar que existe um tom de provocação, o que, para muitos, pode soar como arrogância ou algo semelhante. Existe uma escritura do João Pereira Coutinho? Mais: como o senhor analisa a recepção de suas ideias e textos pelos leitores? Há grande diferença entre o leitor do Brasil e o leitor de Portugal?

O Paulo Francis costumava dizer uma coisa muito simples: trato os leitores como adultos. Repito a mesma coisa. Se os leitores se sentem incomodados com o meu tom, isso significa que o texto não é para eles. É para adultos, coisa que eles não são.

Sobre a escritura JPC [João Pereira Coutinho], sim, existe. Sobretudo em blogs portugueses, que copiam e plagiam o estilo e, às vezes, as ideias. No início, isso irritava-me um pouco. Hoje, divirto-me ao ver espelhos de mim próprio.

O leitor do Brasil é mais participativo; escreve muito, seja para concordar ou discordar. O leitor português é mais acomodado. Por outras palavras: os portugueses insultam menos.

7. Ainda a respeito dessa recepção por parte dos leitores, uma fatia considerável dos críticos de mídia tem observado a internet como plataforma de emancipação dos leitores em geral. Assim, na sua opinião, a internet ajuda ou atrapalha a formação de leitores mais preparados e/ou críticos?

Não pretendo ser uma espécie de ludita moderno, mas a internet tem um problema: é um instrumento nocivo se o utilizador não tiver uma formação clássica por trás. Ironicamente, a internet não dispensa a formação clássica; pelo seu caos epistemológico e até ético, a internet exige essa formação como nunca. Uma formação que nos indica o que devemos procurar; como procurar; e sobretudo como nos comportar. Uma pessoa que não tenha hábitos de leitura, estudo e reflexão usará a internet de todas as formas, excepto da forma mais útil e acertada. Sem uma sólida formação clássica, que é longa e difícil por definição, a internet é um brinquedo nas mãos de um macaco.

8. Existe um tema sobre o qual o senhor não se sente à vontade para escrever para os leitores do Brasil? Já foi criticado por tratar de questões polêmicas especificamente pelo fato de não ser brasileiro?

Não escrevo sobre temas de política brasileira por dois motivos. Primeiro, porque sou um convidado em terra estrangeira; e um convidado não começa a fazer críticas ou a dar ordens aos anfitriões. Uma questão de educação, que apenas foi quebrada duas ou três vezes porque o assunto deixou de ser especificamente brasileiro e ganhou uma importância mundial. Se o Brasil e a Turquia, por exemplo, serviram de escudo para o regime iraniano com um absurdo e irresponsável acordo nuclear, enfim, era difícil ficar calado. Em segundo lugar, não escrevo muito sobre política brasileira porque não tenho um conhecimento aprofundado sobre o tema. E já existem excelentes colunistas no Brasil para fazer esse trabalho sujo: o Reinaldo Azevedo, o Fernando Barros e Silva, a Dora Kramer, o Mainardi e tantos e tantos outros.

9. Existe um método de trabalho para a composição de seus artigos? Como é que o senhor escolhe os temas sobre os quais vai escrever: "afinidades eletivas" ou o assunto mais comentado do momento?

O critério é bastante simples: escrevo crónicas que gostaria de ler. E as crónicas que gosto de ler estão normalmente um degrau acima do humor e um degrau abaixo do ensaio. Pode ser sobre tudo: o assunto do momento; uma afinidade electiva; um desastre pessoal. Como diria o Millôr Fernandes, citando o poeta, "todo homem é minha caça".

10. Retomando a primeira questão, quem são os criadores (literatura, artes plásticas, música, cinema, filosofia) contemporâneos que mais chamam a atenção de João Pereira Coutinho? Qual a importância dos clássicos para a sua produção intelectual?

Impossível responder a essa questão. Aliás, um aviso: sempre que alguém diz "os meus escritores favoritos são X e Y", isso significa que a pessoa não tem hábitos de leitura e muito menos escritores favoritos. Por cada nome que poderia citar, existe um exército de outros nomes que ficaria à porta. Não seria justo. Prefiro convidá-lo para vir um dia cá em casa e ver a biblioteca. É o melhor auto-retrato que existe.

Para ir além





Fabio Silvestre Cardoso
São Paulo, 6/12/2010

 

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