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Segunda-feira, 10/1/2011
Antonio Henrique Amaral
Jardel Dias Cavalcanti

Através do artista plástico paulistano Sergio Niculitcheff conseguimos marcar uma entrevista com Antonio Henrique Amaral. Participaram do encontro, além de mim, o artista Marcos Ribeiro, Décia Foster (que no momento pesquisava a arte política de Amaral) e o próprio Niculitcheff. A entrevista foi gravada e transcrita por mim. O que se publica aqui é apenas uma parte da agradável e longa conversa que se deu no atelier do artista, no Butantã, em São Paulo, em outubro de 2009 e, em seguida, por e-mail, em novembro de 2010. A entrevista é inédita.

Antonio Henrique Amaral relembra e explica algumas de suas obras políticas, feitas no período militar, como, por exemplo, seus trabalhos sobre o assassinato de Vladimir Herzog. Debate também questões sobre a arte contemporânea, avalia artistas e carreiras artísticas, como a de Hélio Oiticica, pensa ainda o governo Lula e reflete sobre os processos que envolvem a criação em arte. ― JDC

Décia: Durante o período em que o sr. fez obras de caráter político, com o objetivo de criticar e debochar da ditadura, houve algum momento em que se sentiu ameaçado ou afrontado?

Na verdade, não. Mas houve dois episódios, um no qual uma obra minha foi retirada da Bienal da Bahia, foi censurada, e depois em 1971, quando fui convidado para expor em Washington, na Galeria da União Panamericana, no prédio da OEA. O adido militar brasileiro que estava no dia da inauguração, General Montanha, me perguntou o que eu queria dizer com aquelas bananas, pois só tinha bananas na exposição. Aí eu tive que enrolar, dizendo que era apenas uma pesquisa formal; tergiversei, pois não podia dizer que eu fiz isso porque eu achava que o Brasil estava se transformando numa Banana Republic... Mas, enfim, senti que ele não ficou muito à vontade com a exposição.

Jardel: Isso ainda no período militar?

Sim, isso no período militar, 1971. Aí eu fui para Londres e inaugurei uma exposição onde aluguei macacos, e na inauguração foi servido coquetel de banana, caipirinha de banana e havia macaquinhos vestidos de verde e amarelo, que ficavam pulando no ombro das pessoas. Foi um sucesso. Mas não houve ameaça pessoal. Porque os militares estavam mais preocupados com a música popular, que atinge mais público. Teatro também. Eles estavam invocados com o teatro e o cinema, essas manifestações de massa. Porque as artes plásticas, a gente sabe, é para um público muito pequeno e, de certa forma, inofensivo politicamente... E outra coisa: quando eu expus a série de bananas, os jornais e a crítica falaram muito; então eles deitavam e rolavam em cima dos meus trabalhos, porque era uma maneira de, indiretamente, fazer uma crítica, uma sátira, uma zombaria do governo militar, dessa autoridade opressiva. E é difícil o cara se expor ao ridículo censurando uma exposição de bananas. Então, o recado passava.

Jardel: Quer dizer, então, que com as bananas o seu interesse era comentar a ditadura?

Sim, comentar a Banana Republic que os militares estavam construindo aqui no Brasil, e também aprender a pintar, sempre aprendendo a pintar, desenhar...

Jardel: A narrativa, da banana, estava pronta na cabeça do senhor primeiro sendo amarrada, até, em seguida, ela ser esquartejada?

Essa ideia da banana me surgiu depois das bocas e das xilogravuras dos Generais de 1964, 65... Eu pintava as bocas antes. Os Generais já tinham uma abordagem sarcástica com as línguas, com os generais montados em burros ao contrário, tudo isso com as xilogravuras. Agora, quando eu vi a montagem da peça do Zé Celso Martinez, O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, aí foi uma revelação para mim, aquele espírito oswaldiano de deboche, de ironia, sarcasmo, de O Rei da Vela, que era um texto muito crítico da nossa realidade, do provincianismo de nossas elites, do atraso cultural de nosso povo em relação ao resto do mundo ocidental, da cópia descarada das modas francesa, americana, europeia. Então eu pensei: por que não as bananas? E a primeira exposição causou muito impacto, pois só tinha banana. "Como? Só banana?" Eu queria deixar bem explícito o que eu estava fazendo, deixar bem claro o comentário, entende? Então era só banana mesmo.

Jardel: Essa série da banana que está amarrada, depois destruída, isso parece o calvário de um preso político que é preso, amarrado, pendurado e depois torturado.

O espírito da obra é um pouco isso mesmo. Como escreveu o filosofo e brilhante pensador Vilém Flusser, em um ensaio escrito em 1974 depois de uma visita ao meu estúdio em Nova York, é uma reflexão visual sobre o sadomasoquismo da realidade brasileira, da relação sadomasoquista entre autoridade e povo. Porque os militares achavam que a gente era idiota, que todos nós éramos idiotas e que eles é que tinham a verdade e sabiam o que fazer, e os civis, os trabalhadores, estudantes e os artistas eram todos inúteis e babacas, pessoas que deveriam ser silenciadas, amordaçadas, controladas e, se necessário, torturadas para não atrapalhar a marcha da ditadura... Aí, quando cheguei aos EUA, comecei a série dos Campos de Batalha. Foi uma forma de eu superar a fase das bananas, encerrar essa etapa de meu trabalho das bananas. A banana começava verde, inteira, depois sendo amarrada, cortada em pedaços e depois entraram os garfos e as facas. E eu pensei: eu não quero me encaixotar num tema.

O problema do artista é que muitas vezes tem sucesso numa determinada fase do seu trabalho e fica escravo daquela fase e não consegue sair. Di Cavalcanti pintou mulatas até o fim da vida. Eu falei: não vou entrar nessa, ficar encaixotado num período. Estou há trinta anos fazendo outras coisas. Inclusive, eu acho os outros caminhos muito mais ricos, porque é uma aventura muito mais perigosa. Você começa um trabalho como este aí e não sabe para onde vai [Antonio Henrique aponta para suas novas telas abstratas, ainda por terminar, no fundo do atelier.]

Sergio Niculitcheff: A coisa interessante do artista é isso, é o risco, cada novo trabalho é um novo risco, não é uma coisa pronta, cada trabalho é uma coisa nova.

Você só o vê quando termina. Picasso dizia que, se ele tivesse o quadro pronto na cabeça, ele nem pintava. Para que pintar se ele já está pronto na minha cabeça? Ele só vai ficar pronto depois de executado. Agora, a série das bananas foi construída, friamente calculada, eu desenhava as cordas, as bananas com cordas, eu as colocava na minha frente, amarrava com barbante e depois desenhava, fotografava, pintava...

Marcos Ribeiro: Sua obra foi marcada pelo surrealismo também?

Eu acho que às vezes há uma conotação surrealista no sentido de que havia fantasia, não era inteiramente realista como estava na moda em Nova York, fotorrealismo. Não tenho muita preocupação de coerência estética ou teórica, nem temática, nem formal. A liberdade de ser e de não ser, de mudar, de se contradizer, de se aceitar com todas as incoerências do ser humano é um bem que o artista tem que preservar; seu espaço poder mudar a qualquer momento, de acordo com a solicitação interior. Mudar porque seu movimento interior exige que você mude. Baudelaire dizia que a obra de arte é determinada por dois fatores: um mais circunstancial, a Época, a Moda, a Moral, a Paixão. E outro mais eterno, pela Busca Interior do homem para achar respostas para as questões fundamentais do ser humano: quem somos, de onde viemos, para onde vamos e o que fazemos aqui e por quê... O que significa tudo isto, a vida, o Universo... Não é, Sérgio?

Sergio Niculitheff: Por uma necessidade interior, não é?

Por uma necessidade interior, espiritual. Porque é uma necessidade sua... Eu recusei muitos convites para exposições quando terminei a fase das bananas. Recusei, porque não pintava mais as bananas... A busca era outra... Chega uma hora em que a razão de ser de alguma coisa se encerra, outras coisas, outras buscas se impõem. Quando uma coisa morre, outra coisa nasce.

Jardel: Uma coisa que eu queria saber é se havia por parte do sr. um engajamento, leituras marxistas, partidarismo etc.

Não, nenhum. Nunca fui marxista, socialista ou esquerdista... Era, sim, contra a Ditadura Militar Brasileira. O Mário Pedrosa uma vez me perguntou por que eu não era comunista. Ele e o Ferreira Gullar na época eram comunistas. Eu não era comunista; para mim, ser membro do Partido Comunista é como ser encerrado dentro de uma casa, e eu prefiro andar na rua. Eu quero ver a paisagem, eu quero ver o que está acontecendo na rua. Não quero ficar dentro de um quadro partidário e pautar minha vida de acordo com princípios partidários, teóricos, fixos, rígidos e divididos de socialismo, capitalismo, elite, povo, esquerda, direita. A coisa é muito mais complicada, mais complexa. Eu não me enquadro nisso, falei para o Mário Pedrosa. Ele dizia: "Mas você devia ser comunista". Nos anos 70 era bacana ser comunista. O Niemeyer, até hoje, o Jorge Amado, Picasso, era bacana você ser comunista. E mais ainda se você fosse elite cultural, social...

Jardel: Havia também uma patrulha que exigia que as pessoas se filiassem.

É, tinha isso. Agora, veja bem, o Gullar, por exemplo, é um homem que eu admiro porque teve a coragem de romper com tudo isso. Rompeu com o socialismo, o comunismo, chegou um momento em que ele disse: "isso não é exatamente o que eu acredito hoje em dia". Então, ele renovou, ele mudou. Durante uma época você é comunista, depois de uma reflexão você percebe que aquilo não funciona. Ele teve a coragem de mudar.

Todos nós erramos, mesmo diante desses fatos recentes. Mas quem não tem acesso à informação erra mais porque sabe menos. Se você não tem informação, não tem o mínimo de cultura, de experiência administrativa, você vai errar mais e vai ser usado por políticos espertalhões que sabem como se maneja o poder. Foi o que aconteceu com o Lula e o PT, no episódio do Mensalão... Socialmente, o fato de ter desenvolvido o Bolsa Família e propiciar mais alimento e mais consumo pra uma considerável parcela da população brasileira é positivo, foi um passo adiante: Lula de certa maneira veio harmonizar o Sul com o Norte, os ricos banqueiros com o povão necessitado, sem criar atritos sociais muito fortes... Quase não houve greves nem conflitos nos últimos anos, com exceção dos cidadãos comendo e consumindo mais... Isso é o lado positivo, muito positivo para o desenvolvimento econômico do país... se será um fator de evolução de nossa qualidade de vida, temos que esperar para ver...

Décia: E com todos esses acontecimentos o sr. não tem vontade de voltar a trabalhar com temas políticos?

Não tenho saco (risos). Outra vez, fazer comentários políticos?! Eu fazia nas ilustrações que são bastante mordazes [Antonio Henrique ilustrava a coluna dominical de Ferreira Gullar, no jornal Folha de São Paulo.] Uma das últimas que fiz, por exemplo, é o Lula no meio de notas de dólares, de cruzeiros e reais. Eu penso, mas a arte... a política... é um aspecto da vida, mas não é tudo, nós temos outras preocupações que transcendem a realidade política.

Sergio Niculitcheff: Inclusive, eu queria comentar uma coisa sobre a série das bananas, que é importante por causa da ditadura, mas independente disso tudo é uma excelente pintura, o valor não é somente por causa do tema.

Eu aprendi a pintar através das bananas. Quando eu conheci a Tarsila [do Amaral], em 1970, ela já estava velhinha, numa cadeira de rodas, foi na rua Augusta, numa galeria, e ela me disse: "interessante sua forma de aprender a pintar usando a banana". É pintura, claro... Interessante o que você falou. É sempre pintura, é sempre um exercício de pintura.

Jardel: Vamos voltar aos anos 70. Por exemplo, o caso Herzog. Como foi a notícia da morte dele e esses seus quadros sobre ele?

A notícia da morte dele... eu me lembro até hoje, foi manchete em todos os jornais... O Herzog era um cara que frequentava as galerias de arte, ia às inaugurações de exposições, ele e a mulher dele, a Clarice. Era um cara de trinta e poucos anos, jovem, diretor de jornalismo da TV Cultura. E de repente ele vai depor, todo mundo sabia que ele ia depor, e no dia seguinte aparece a notícia da morte dele. Foi um choque, saiu no Estadão em página inteira, no Jornal da Tarde. Sob esse impacto eu resolvi pintar quatro quadros que eram A Morte no Sábado ― Tributo à morte de Vladimir Herzog. O fato de os militares matarem uma pessoa dessa qualidade humana, cultural, foi um choque, e o cinismo brutal de tentar afirmar que tinha sido suicídio...! Um horror!

Jardel: Houve censura aos quadros nessa época ou não?

Não foram imediatamente expostos. Quando completou um ano da morte dele eu os doei para o Sindicato dos Jornalistas. Depois começaram a serem expostos em exposições.

Jardel: Mas o povo não tinha acesso...

Não tinha. O povo sempre teve pouco acesso à cultura, o povo sempre teve muito acesso ao futebol, às noticias sobre futebol, com o apoio de toda a elite política que se protege à sombra do noticiário futebolístico... O fato de a gente fazer coisas que não são imediatas, que não são claras, exige que as pessoas pensem, se informem, sintam, abram a cabeça. É o papel civilizador da arte. Música popular é de consumo imediato, o cara não precisa pensar, a letra entra, sai. Claro que tem compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gil, Vinicius, Tom Jobim e tantos outros que fazem musica para a pessoa ficar mais alerta. Mas, em geral, o povo brasileiro gosta mesmo é de música que entra por um ouvido e sai pelo outro...! "Eguinha Pocotó" e coisas do gênero...!

Décia: A fase das bananas foi mais zombando, mas o caso Herzog foi um grande impacto que o fez expressar seu sentimento de revolta?

Exatamente. Porque houve outras mortes. Mas foi emblemática a morte de Herzog. Também o caso do filho da Zuzu Angel, o caso do Paiva, que foi jogado do avião... Como o Herzog era um jornalista da TV Cultura, tinha uma projeção maior do que o Paiva, que era um ativista. No fundo essa obra vale para todos os mortos, vítimas da violência da ditadura militar.

Marcos Ribeiro: O Ferreira Gullar tem uma visão particular sobre a arte contemporânea. Você concorda com ele ou gosta de alguns modelos de arte que se pratica hoje?

O Gullar é radicalmente contra uma série de coisas... Ele acha isso e aquilo um desastre. Eu sou mais tolerante. Mesmo que eu não entenda (risos). Mesmo que eu não compartilhe. Muita gente curte, portanto, deve-se aceitar muita coisa nova que vem com as novas gerações...

Jardel: E o que acha dessa coisa nos anos 60 e 70, por exemplo, dos objetos, fim do suporte, aquela coisa toda?

Isso mexia com a gente, porque nos anos 60 havia a performance, a arte conceitual. Eu cheguei a Nova York e isso estava muito na moda, a body art, Beuys, a influência de Marcel Duchamp. Eu fui a uma performance, do Vito Acconci, era uma dentro de um loft, alguns convidados em volta e ele se açoitando, entendeu? (risos). Tinha gente sangrando ali no meio. Tinha aquele alemão que se mutilou. Isso era a body art, performance. Ele acreditava; é um artista muito considerado na Europa.

Eu acho que a arte é coisa de vida, vital. Tem que se trabalhar para o ser humano de alguma maneira... Ninguém quer destruir nada. Eles fazem isso achando que estão construindo... Minha maneira de construir, a maneira do Niculitcheff, é outra. É o trabalho do pintor, do desenho... Se é antiga ou não... A gente nunca sabe o que é melhor... Para mim são achados inteligentes. Agora, se o achado inteligente é arte, e se é boa arte, só o tempo vai dizer. O que vai sobrar disso? Só vamos saber com o tempo. Pesquisar novas formas de se expressar é sempre positivo.

Sergio Niculitcheff: É uma coisa que só o tempo vai peneirar mesmo. Na minha época havia vários artistas que foram fazer outra coisa da vida.

Décia: Depois, o que fica?

O Gullar é o único que tem coragem, com razão ou sem razão, de se opor a isso. De refletir e expor sua posição contrária a determinadas instalações bizarras... Por isso é admirado por uns e odiado por outros.

Todos: Odiado pela maioria...

A maioria acha que ele é reacionário. Ele está tendo coragem de expressar a opinião dele. Ele está sendo honesto com o que acredita. Eu admiro isso nele. Mas as opiniões dele são as dele...

Marcos Ribeiro: Ele está questionando a gratuidade contemporânea...

A gente não sabe o que é modismo, o que é mercado, e o que permanece, o que tem mais consistência... só o tempo vai peneirar. Certas linguagens atuais me são completamente indiferentes, não me dizem nada, não me sensibilizam... Talvez seja uma deficiência de minha capacidade de percepção ou a coisa realmente não estar bem proposta... Vai saber... um dia o tempo nos dirá. Talvez estejamos sendo superados pelas novas tendências hegemônicas, quem sabe a gente vai envelhecendo e perdendo a sintonia com as novas linguagens, pode ser... Sempre acontece isso nas gerações que se sucedem umas às outras. Sou e assumo que sou um artista que fez sua obra no século passado, no século XX. Como estamos no século XXI, vai saber...!

Sergio Niculitcheff: A gente tem um gosto, ele tem o seu... Mas independente da questão de gosto, acho legal que as pessoas estejam fazendo arte.

Com certeza, as pessoas têm é que se expressar. Essa "falta de respeito" às formas tradicionais é fundamental. Se a gente fosse fazer apenas o que é tradicionalmente aceito não haveria transformação e as linguagens se repetiriam... seria uma chatice!

Sergio Niculitcheff: Como a gente vê a coisa agora... já esfriou. Mas, na época...

Na época, fazer uma banana de dois metros amarrada e cortada por uma faca e espetada por um garfo, sangrando... O que é isso? Foi uma novidade, no seu contexto, hoje estamos em novo contexto...

A época hoje é complicada, pois estamos passando por uma rapidez tão grande em termos de transformações tecnológicas, e a arte procurando se entender com esta nova realidade... A tentativa de fazer vídeo-arte, arte cinética... Não, cinética, não, isso é passado, a arte eletrônica, com circuitos eletrônicos, computer art, internet...

Todo mundo decreta o fim da pintura e de repente aparece a pintura chinesa, a pintura italiana, a pintura alemã, os novos expressionistas alemães nos anos 80 e 90... A pintura estava morta nos anos 70, diziam que, com a arte conceitual e a performance, estava morta.

Houve uma performance nos EUA que a inauguração era o artista falando, aí o comprador... o que fazia? Comprava a conversa do cara (risos). A galeria vendia uma hora de conversa com o artista por 10 ou 20 mil dólares. O sujeito comprava e guardava a fita da conversa com aquele artista conhecido que saiu no New York Times.

Sergio Niculitcheff: Tem essa coisa de aceitar as várias linguagens, mas a questão do gosto deve ser colocada também. Tem coisas que eu reconheço que é arte, mas de que não gosto. Agora, a Bienal eu acho uma bomba. Vou ver apenas o que me interessa mais.

Eu não consigo me comunicar com muita coisa. Por exemplo, não tenho o menor interesse nos parangolés do Hélio Oiticica (risos). Não me dizem nada...

Então, como você falou, tem que saber qual é o seu gosto. No fundo, isso te remete a um autoconhecimento. Você deve saber, diante da multiplicidade da vida contemporânea, onde você se encaixa, "qual é a sua", qual é o seu caminho, onde você está, quem você é, dentro dessa balburdia da vida contemporânea, dos diversos caminhos que se abrem profissionalmente, socialmente, emocionalmente. A gente tem que ser honesto com o que a gente é. Não pensar só com a cabeça, sentir... Sentir com a emoção. A coisa te toca? Emociona? Ou é apenas um discurso teórico cheio de palavras eruditas que "explicam" o objeto em questão?

Sergio Niculitcheff: Porque o trabalho do Oiticica deve servir para algumas pessoas. Tem seus nichos, seus espaços.

Interessante no Hélio é sua atitude de subversão dos meios. Mas sabe essa coisa de "Seja Marginal, Seja Herói", esse culto ao traficante de drogas, Cara de Cavalo, já teve seu tempo, não pega bem hoje. Talvez esse romantismo seja muito datado, anos 60, 70 ... Já era, não durou muito. Não me diz nada essa abordagem de cultuar o traficante, o marginal, tem apenas interesse histórico e os objetos interessam a colecionadores que desejam ter obras do período, mas... Há atitudes mais dignas e criativas no mundo da subversão da forma, da linguagem.

Jardel: É uma coragem falar assim sobre o Oiticica, que é quase mistificado no Brasil. Falar: "Eu gosto disso do Oiticica ou eu não gosto daquilo".

Sou apenas um pintor, desenhista e gravador. O universo do Hélio, embora eu tenha consciência de que ele é importante para muita gente que admira suas coisas e o tem como um grande ídolo, não me toca muito, não. Procuro ser honesto comigo mesmo e com minha sensibilidade. As teorias estéticas estão para mim assim como a ornitologia está para os pássaros, como dizia o pintor americano Barnett Newman.

Jardel: Quando fala isso, as pessoas se incomodam, pois é o santo deles.

Mas acontece que não sou muito religioso e, como sabemos, muitos santos e todos os ídolos têm pés de barro ou são apenas santos do pau oco...

Marcos Ribeiro: Em arte temos que investigar...

A gente tem que refletir sobre essas coisas. A gente reflete sempre. No fundo, o sentimento da gente tem que ser de perplexidade permanente. O meu, por exemplo, é: perplexidade com o mundo à minha volta e perplexidade comigo mesmo, porque me surpreendo a cada dia com meus pensamentos, sentimentos e comportamentos, pois não me acostumo comigo mesmo e nem com os outros, porque as coisas mudam muito rapidamente, o tempo passa muito rápido, as coisas se transformam numa velocidade muito grande. Isso torna a vida muito interessante. Complicada, mas interessante.

É muito arriscado você dizer que isso é bom ou ruim em arte, eu acho. Certas obras e artistas não fazem a minha cabeça, eu prefiro outra confusão, outra desordem; para mim, a desordem do ser humano é mais bem expressa em obras menos intelectuais, menos cerebrais, mais confusas, mais surreais e contraditórias. Nossa cabeça e nossas emoções são muito mais loucas do que as cuidadosas construções dos geométricos e concretos e neoconcretos... A contradição, a confusão e a incoerência são muito mais as marcas do ser humano do que a ordem e a geometria, ou melhor, um mix de loucura e de geometria caracteriza a contradição humana.

Porque essa coisa muito ordenada, muito asséptica, é interessante, elegante, decorativa... Mas, enfim, você não pode ter um julgamento de valor. Deve estar aberto para absorver aquilo que te interessa e repudiar o que não faz sua cabeça. Sem julgamentos, com emoção, mas sem prepotência ou certezas, pois no mundo das artes, e das emoções humanas, nada é certo nem definitivo, muito pelo contrário, tudo é precário e temporário... Tudo é muito incerto e passageiro...

Sergio Niculitcheff: Na História da Arte mesmo tem artistas famosos que não me interessam. Eu reconheço seus valores, mas não gosto. Por exemplo, o Vlaminck. Eu não consigo engolir.

Renoir, Degas são meio chatos... Eu reconheço que são pintores importantes na história da arte, mas...

Marcos Ribeiro: E Picasso, você gosta?

Sim... Picasso é unanimidade, não? Picasso é o pai de muita gente.

Jardel: Picasso rompia sempre...

Ele foi um artista em incessante movimento. Ele tinha coragem de romper e sempre ser honesto com ele até o fim da vida.

Sergio Niculitcheff: Os últimos trabalhos dele dão de dez em muitos trabalhos contemporâneos.

Ele tinha uma liberdade, uma energia, uma vida interior, seja de ordem emotiva, sexual, intelectual, desde a fase do Cubismo, que era mais espiritual, intelectual, até esta parte mais sensual, das gravuras, das suítes Vollard. Ele se põe ali dentro como um velho voyeur, a dirty old man... Ele era profundamente honesto e íntegro. Alguém vem dizer que ele era um palhaço, um ganhador de dinheiro, isso ele era também. Nós somos feitos de muitas almas... ninguém é completamente íntegro e coerente. Ser coerente é aceitar a sua incoerência e a alheia e não exigir de si nem do próximo uma coerência falsa...!

Sergio Niculitecheff: O interessante é que ele se colocava no seu trabalho, colocava tudo isso no trabalho dele.

E ele tinha essa coragem de mudar, não se classificar, se autodefinir... Ora era figurativo, ora era cubista ou ceramista, ou gravador, mas sempre com muita energia e sinceridade. Agora, você veja, nós estamos falando dentro de nosso contexto, de nossa situação de São Paulo. Você vê: coloca uma obra de Picasso na periferia de uma cidadezinha do interior... eles não vão decodificar a linguagem picassiana... Não conhecem. Já o bom grafite é outra coisa. Aquilo abre as portas para muita gente começar a pintar, aprender, e ir para outra. O que faria o Basquiat aos 50 anos?? Porque ele morreu aos vinte e poucos. O Leonilson conseguiu fazer uma obra extremamente pessoal, o que não é pouca coisa...! Você ser pessoal e original é uma vitória, é muito difícil... Fazer um trabalho original, pessoal, é uma grande e difícil conquista.

Sergio Niculitcheff: O que é mais difícil... porque o resto você consegue administrar tecnicamente. Mas "se colocar no trabalho" é a parte mais difícil.

O artista tem que se colocar mesmo, e essa é a marca da originalidade. Na maneira de você trabalhar não apenas tematicamente, mas no gesto, na forma, na textura, nos materiais, nos meios escolhidos, sejam eles quais forem... Isso dá o caráter pessoal, sua assinatura. Se isso vai contribuir ou não para a arte universal, a gente não sabe, e não tem a mínima importância saber. Se vai morrer com a gente ou se vai permanecer, não é nosso assunto...

Jardel: O que vale mesmo é a aventura.

A aventura, enquanto você está vivo, fazendo aquilo e sendo honesto com o trabalho que está fazendo. Você tem que fazer seu trabalho como se fosse para sempre com toda integridade... estar sempre "inteiro na jogada".

Sergio Niculitcheff: Mas existem estes artistas que fazem as coisas só para venderem mesmo, tipo Romero Brito. Porque tem mercado e o mercado faz aquela pressão... E o cara "supre" aquele consumidor que só quer isso.

Romero Brito é um caso de sucesso eminentemente comercial. Ele desenvolveu uma fórmula pessoal de fazer suas coisas, bebeu em várias fontes, fez, deu certo comercialmente, trabalhos manuais bem feitinhos, objetos de decoração que têm inegável sucesso comercial, junto a um público bem específico... Se é isso que ele quer, tudo bem.

Sergio Niculitcheff: Ele atingiu os objetivos dele.

O Brasil é e sempre foi um país atrasado em relação ao resto do mundo ocidental. E nos anos 40, em plena guerra, Picasso já tinha pintado a Guernica, o cubismo, Les Demoiselles d'Avignon, o Expressionismo Abstrato da Escola de Nova York estava a todo vapor, Pollock, Motherwell, Rothko trabalhavam, e o pessoal daqui fazendo estripulias bem comportadas na Semana de Arte Moderna de 22, e casinhas, paisagens, marinhas agradáveis, retratos...

Há uma distância cultural imensa, porque o maravilhoso e vertiginoso século XX já tinha começado na Europa, Estados Unidos, México... Você tem que partir sempre de sua experiência pessoal, de seu ambiente imediato, mas saber o que está acontecendo no resto do mundo é fundamental... Isso sempre enriquece sua experiência pessoal, não para substituí-la, mas para enriquecer sua experiência de viver e trabalhar...

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Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 10/1/2011

 

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