No fim de 2018, o estúdio de design Coverge lançou uma chamada para criações literárias, artísticas e fotográficas com o tema “Visceral”. Segundo palavras dos idealizadores, as histórias deveriam contemplar características de “horror passivo”.
As produções seriam reunidas em uma antologia que, por sua vez, integraria o projeto Delírios. Voltado para expressões artísticas de cunho fantástico, a iniciativa pretende dar oportunidade para escritores e artistas independentes divulgarem seu trabalho, que recebe os cuidados editoriais da equipe da Coverge. O primeiro lançamento do projeto Delírios aconteceu em agosto de 2018 e foi a coletânea de contos cyberpunk ACID+NEON.
As obras enviadas para “Visceral” foram numerosas e diversas, o que motivou a equipe da Coverge a lançar duas antologias: Carcoma e Mirage. Os livros foram organizados por Washington Albuquerque, Castro Pizzano, Cláudya Spíndola e Hezi Santos.
Eu tive a oportunidade de contribuir com o conto “Desejo Sangrento” na coletânea Mirage. Os livros podem ser baixados gratuitamente nos links abaixo.
Aura dos Anjos estranhou não acordar com o canto do galo Dioscórides que invariavelmente aos primeiros albores da manhã exercia, com pontualidade, o ofício que a natureza lhe dera.
Abrindo a janela do quarto, notou que, apesar da hora, a lua continuava boiando, soberana, no alto do céu, absolutamente alheia à tirania dos relógios e às leis da mecânica celeste.
Saiu então apressada para o quintal rumo ao galinheiro, onde, empoleirado, o galo dormia a sono solto, a crista caída, as asas recolhidas.
Ora essa, murmurou com seus botões, já são oito e vinte e o sol ainda não nasceu!
Entregue às suas cismas, quase esbarrou na avó Mariquinhas que, de mortalha arrepanhada, arrancava uns pés de margaridas para fazer seu desjejum.
Vó Mariquinhas, que é que a senhora está fazendo aqui? Seu lugar é lá no cemitério, disse a menina.
Então, com muita paciência, sua avó explicou que nos dias de Lua Cheia os mortos voltavam ao mundo dos vivos para completar tarefas deixadas em meio, e coisas assim. No seu caso, por exemplo, era urgente trocar a mortalha pela roupa luto fechado dos domingos de plenilúnio, pois deixara de assistir à missa quando fora levada para o Além.
Acompanhada pela avó, Aura dos Anjos entrou em casa, acendeu o pavio da lamparina e correu a chamar os pais em seu socorro, mas nem os gritos da menina para que se levantassem; nem os tapinhas que deu nos seus rostos foram suficientes para acordá-los de seu sono de pedra.
Deus meu!, exclamou assombrada, eles estão mortos. E desatou num choro convulsivo.
Não estão não, tranqüilizou-a avó, quer dizer, estão e não estão.
Como assim?, perguntou a neta entre soluços.
É que, nos dias de Lua Plena, quando o sol não nasce cedo, os vivos entram em estado de letargia, pois, do contrário, sua convivência com os mortos acabaria por afetar-lhes a razão. Mas você, minha neta, ainda não está preparada para entender dessas coisas.
Na igreja, onde as imagens estavam cobertas de roxo, o Monsenhor Rezende, ostentado um solidéu desbotado e a estola puída, ainda retirando aos piparotes uns grãos terra da batina apodrecida, iniciara sua prédica do alto do púlpito, quando a avó entrou no templo, onde um punhado de defuntos atentos assistiam ao ofício.
Quando o relógio da torre da igreja ecoou as cinco badaladas da antemanhã do novo dia, o galo Dioscórides, abrindo freneticamente as asas, empinou a crista e soltou seu canto, anunciando o retorno da tirania dos relógios e o restabelecimento das leis da mecânica celeste.
Muito esquisito isso! Quando acordei eram oito e vinte da manhã... Será que o tempo está andando pra trás?, perguntou-se a garota.
A mãe de Aura dos Anjos acordou estremunhada com o canto do galo e apressou-se no preparo do café da manhã, lamentando a ausência da filha, que sempre a poupava daquela tarefa. Felizmente, pensou, o marido ainda dormia, porque, se levantasse com o café ainda por fazer, desataria num destampatório do tamanho do mundo, acusando a mulher de desmazelo e culpando a filha por ter morrido de nó nas tripas depois de devorar uma jaca inteira com caroço e tudo.
Levando a mão à boca para conter um grito de susto, a mãe, que ainda não se habituara a perda filha, deparou-se com o bule fumegante na trempe do fogão de lenha. Depois, firmando-se nas pernas bambas, lembrou com orgulho que a filha era assim mesmo: nunca deixava de fazer o café da manhã. E sua filha mais uma vez preparara o café para a mãe.
Para a avó Mariquinhas, católica fervorosa em vida, ou a menina era dotada de poderes desconhecidos ou estava morta mesmo e seu espírito ainda não de desprendera do lugar em que vivera. Conhecia casos assim em que os mortos agiam como se existissem, repetindo a rotina quotidiana, como rezava a tradição oral de seu povo desde tempos imemoriais.
Era esse o mistério que dava continuidade ao mistério da vida: um mistério dentro de outro mistério, igual àquelas bonecas russas, as chamadas matrioskas, umas dentro das outras e todas dentro de uma só.
Durante o evento Pensar Edição Fazer Livro, já divulgado aqui, haverá o lançamento do segundo livro da coleção Pensar Edição, publicada numa parceria entre as editoras Moinhos e Contafios, de Belo Horizonte, que pretendem compor um catálogo de obras sobre estudos do livro e da edição. O primeiro volume foi Livro - Edição e tecnologias no século XXI, de autoria da professora e escritora Ana Elisa Ribeiro. O segundo volume, com lançamento previsto para o dia 1 de junho, às 16h30, no Sesc Palladium, é Literatura infantil e juvenil - campo, materialidade e produção, organizado por Marta Passos Pinheiro e Jéssica Tolentino, ligadas ao CEFET-MG. Entrada franca. A obra será vendida por R$ 45 e pode ser encontrada no site da editora Moinhos.
A I Jornada Escrita por Mulheres, na Faculdade de Letras da UFMG, acontece em 29 de maio, ao longo do dia, com atividades voltadas à produção de escritoras brasileiras. O evento é gratuito.
Sábado, 1o de junho, de 9h às 18h, no teatro de bolso do Sesc Palladium, em Belo Horizonte, ocorrerá a terceira edição do Pensar Edição Fazer Livro, evento promovido pelo Grupo de Pesquisa em Escritas Profissionais e Processos de Edição, sediado no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, em parceria com a editora Moinhos. Este ano, serão oferecidos uma oficina de livro-poema, com o poeta e designer Mário Vinicius; duas mesas de debates, a primeira sobre ilustração, com Cláudia Jussan, Marilda Castanha e Nelson Cruz, sob mediação da editora Jéssica Tolentino, e a segunda mesa sobre feiras de livros independentes, com a participação dos agitadores Jão (Faísca Mercado Gráfico), Wallison Gontijo (Textura e Urucum) e Larissa Mundim (e-Cêntrica, em Goiânia), sob a mediação da jornalista Flávia Denise. Por último, uma palestra sobre o conceito de obra, com o professor Luis Alberto Brandão, da UFMG. As atividades são gratuitas e as inscrições estão abertas até dia 29.
Se já não bastasse todas as polêmicas que a política nos fornece, Paula Fernandes, em parceria com Luan Santana, lançou uma versão para “Shallow”. A canção de Nasce uma Estrela (2018), que rendeu um Oscar para Lady Gaga, foi traduzida de forma bem livre pela cantora sertaneja. O que, convenhamos, não é algo inédito na história da música brasileira. Quem não se lembra que Sandy & Júnior, ao traduzir “Immortality”, parceria de Bee Gees e Celine Dion, trocou “We don’t say goodbye/ We don’t say goodbye” por “O que é imortal/ Não morre no final”? Ah, se houvesse internet banda larga na época!
Em sua versão tupiniquim, “Shallow” reencarnou como “Juntos”. Até aí, tudo bem. O grande ponto de crítica da versão brasileira foi o refrão. Talvez por falta de habilidades com tradução lírica, ou por uma escolha infeliz, Paula Fernandes, que assina a letra, tacou um “juntos e shallow now”, uma mistura de idiomas que não é muito comum por aqui. Ficou confuso, ficou estranho e virou sucesso – ao menos na rede de memes.
A tradução de músicas estrangeiras é algo bastante comum no Brasil. A Jovem Guarda, por exemplo, teve versões célebres. É o caso de “Banho de Lua”, de Celly Campello, que veio ao mundo como uma canção italiana (“Tintarella di Luna”, de Mina). “Pare o Casamento”, de Wanderléa, veio do original “Stop the Wedding”. E “Era um garoto que como eu amava os Beattles e os Rolling Stones”, gravado por Os Incríveis e, com mais sucesso, pelos Engenheiros do Hawaii anos mais tarde, também era uma música italiana, interpretada por Gianni Morandi – e, acreditem, o título longo é a tradução literal do original.
A ideia, vamos ser sinceros, é muito boa. Você pega uma fórmula de reconhecido sucesso e faz uma letra em português, já que nem todo mundo tem a obrigação de dominar um idioma estrangeiro. Voilá, você tem um produto pronto para tocar à exaustão nas FMs, ou, atualizando, nos aplicativos musicais de streaming. O Latino, grande hitmaker brazuca, proporcionou alguns bons luxos ao seu macaco de estimação (in memoriam) graças às versões “Festa no apê” e “Despedida de solteiro”. Há quem goste.
O sertanejo, gênero musical em que nossa Lady Gaga Paula Fernandes se enquadra, também já abusou dessa fórmula. Chitãozinho & Xororó, nos anos 1990, provaram que também existe sedução vinda do norte do Paraná e fizeram uma versão para “Have You Ever Really Loved a Women?”, de Bryan Adams, sucesso no filme Don Juan DeMarco (1995). No mesmo espírito, um filho menos famoso de Francisco e seu parceiro, Cleiton, lançaram “Na Hora de Amar”, versão de “Spending My Time”, do grupo sueco Roxette. Houve muitas outras ocorrências do tipo, mas vou poupá-los do histórico.
Mas falar em versão brasileira para clássicos estrangeiros seria impossível sem mencionar dois cases de sucesso. O primeiro deles foi a banda Yahoo, fundada pelo guitarrista Robertinho de Recife, especializada em traduzir baladas de hard rock para o idioma português. Em um tempo em que o rock era pop, eles emplacaram músicas em trilhas sonoras de novelas e circularam por alguns dos bons programas de auditório do período.
Além deles, houve Angélica, que conseguiu, com “Vou de Taxi”, aos 15 anos, se tornar uma marca competitiva no acirrado mercado de “loiras apresentadoras de programas infantis”. A versão brasileira para “Joe le Taxi”, sucesso interpretado originalmente por Vanessa Paradis, foi uma das dez mais tocadas no Brasil em 1988. Anos depois, Angélica tentaria novo sucesso com versões. E eu até entendo que alguém tenha acreditado que uma versão de “Linger”, dos Cranberries, poderia emplacar. Agora, turbinar “Light My Fire”, clássico do The Doors com a frivolidade de “Bye que bye bye bye” só poderia dar certo. Se o objetivo fosse criar uma coisa muito exdrúxula, é claro.
Essa pequena coletânea de versões brasileiras Herbert Richers para sucessos internacionais não tem, verdadeiramente, um propósito muito claro. Mas o leitor pode entendê-la como uma ameaça. Enquanto você fica aí, horrorizado com a criatividade de Paula Fernandes, saiba que vem muito mais por aí. Sempre vem. Força, amigos, juntos e shallow now somos mais fortes.
Sábado, 11 de maio, durante a feira literária Urucum, a poeta Ana Elisa Ribeiro lançará seu novo poemário intitulado Dicionário de Imprecisões. O evento terá início às 14h e seguirá com autógrafos até as 17h, no Guaja (Av. Afonso Pena, 2881, na região central da capital mineira).
O livro, oitavo volume de poemas da autora, é resultado de uma parceria com a editora e gráfica Impressões de Minas, que vem se destacando no mercado editorial, com a produção de livros-design feitos quase artesanalmente. O Dicionário de Imprecisões é o segundo projeto com a autora belo-horizontina, com quem já fazem o planner poético desde 2017.
Ao longe, o aeroporto se reconta
nos mitos dos roteiros permanentes.
Ansiando merecido pouso, minha aeronave de papel
retorna do trajeto diurno.
Olhando as ruas, projeto aterrissagem
em terra amiga. No fundo dos mares
ressonam estrelas. E náufragos.
“A canoa virou / Deixaram ela virar”.
No relevo da cidade, farejo travessias.
Ao desajeito dos meus versos, canto
utopias e cantigas de roda.